Goiás, um dos motores do agronegócio nacional, sente de forma aguda os efeitos de uma crise que atinge o setor com intensidade crescente. A combinação de fatores internos e externos tem levado produtores rurais — inclusive grandes grupos — a recorrer à recuperação judicial como tentativa de sobrevivência. Casos emblemáticos, como os das empresas Agrogalaxy e Grupo Elisa, tramitam no Judiciário goiano, expondo o grau de fragilidade de parte expressiva da cadeia produtiva.

De acordo com a Serasa Experian, os pedidos de recuperação judicial no agronegócio quase triplicaram em 2024, e os dados mais recentes do Estadão/Broadcast mostram que os dez maiores grupos do setor acumularam R$ 15,7 bilhões em dívidas até junho de 2025. Goiás está entre os estados com maior número de ações judiciais e renegociações em curso.

A origem da crise vai além da oscilação de safra. O setor enfrenta os efeitos do aumento dos juros, inflação de insumos, eventos climáticos extremos, além da falta de infraestrutura, baixo investimento em inovação e ausência de políticas robustas de mitigação de riscos. A deterioração das contas públicas também limita o papel do Estado como agente de apoio, num momento em que produtores precisam de crédito e previsibilidade.

No cenário externo, o tarifaço anunciado pelo governo Trump acende um novo alerta. Desde 6 de agosto, produtos como café, carne bovina e pescados passaram a pagar 50% de taxa de importação nos Estados Unidos — terceiro maior parceiro comercial do agro brasileiro. A medida pode causar perdas bilionárias ao setor: só o café, principal item vendido aos americanos, pode registrar queda de até US$ 481 milhões neste ano, segundo estimativas da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). A carne bovina, embora tenha na China seu maior mercado, encontra nos EUA o principal comprador para a indústria alimentícia — a do hambúrguer, por exemplo.

A dificuldade de redirecionar rapidamente essas exportações para outros mercados pode agravar ainda mais o quadro. Cada país impõe exigências técnicas e sanitárias próprias, o que torna lento e oneroso o processo de diversificação. Para produtos como o mel, a manga ou os pescados, a dependência do mercado americano é ainda mais crítica.

Goiás, com sua grande produção de proteína animal e grãos, está particularmente exposto. A crise rural se reflete na economia estadual, na geração de empregos e até na arrecadação de tributos. Além disso, afetando as cadeias logísticas e industriais, seus impactos acabam alcançando também o ambiente urbano — inclusive nos preços dos alimentos.

A recuperação judicial, embora legalmente prevista, revela um setor sob estresse. Sozinha, ela não resolve os gargalos estruturais que minam a competitividade do agro nacional. Para além do socorro jurídico, o momento exige ações coordenadas entre poder público e iniciativa privada, planejamento estratégico em infraestrutura e apoio efetivo aos pequenos e médios produtores, que ainda representam a maioria no campo.

A crise do agronegócio é, portanto, econômica, institucional e geopolítica. Enfrentá-la exige mais do que recorrer ao Judiciário: exige enfrentar a realidade de que o campo, embora resiliente, não é imune às decisões de Brasília, Pequim ou Washington.

Letícia Marina da S. Moura, advogada e jornalista. Especialista em direito empresarial e em falência e recuperação de empresas

Os artigos publicados não refletem a opinião de O POPULAR. Sua publicação obedece ao propósito de estimular e fomentar a diversidade e o debate de temas locais, nacionais ou mundiais.

Crise no campo, impacto no país

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Letícia Marina da S. Moura

Cada eleição tem uma questão central. Em 2018, era a moralidade. A nova direita uniu dois aspectos da moralidade: sua face política e sua face cultural – a pauta dos costumes. E para essa questão, 58 milhões de pessoas achavam que a resposta era Bolsonaro.

Um novo modelo de governo mostrou suas credenciais e os novos desafios lançaram uma outra problemática. Em 2022, a maior parcela da população queria voltar a ter poder de compra. Pouco importava o conceito de moralidade dominante se a comida, o combustível e o gás estavam caros.

Bolsonaro não compreendeu isso e insistiu em sua fórmula vencedora de 2018. Já o PT, encampou essa nova demanda. Um de seus melhores materiais de campanha ironizava seu próprio carimbo ideológico: “cuidado, porque se o Lula voltar, aquele comunismo vai voltar, e aí a gasolina pode voltar a custar 3 reais, o gás pode voltar a custar 35, a conta de luz pode voltar ao normal e pode até voltar a ter comida todo dia pra todo mundo”.

Só tardiamente o grupo político de Bolsonaro percebeu a importância dessa demanda. Após um desgaste do PT na gestão da economia e da política fiscal, os aliados de Bolsonaro lançaram a guerra dos bonés: “comida barata novamente, Bolsonaro 2026”.

A estratégia inspirada em Trump tinha outro princípio. Apesar de efetivo, o MAGA era subjetivo de forma proposital, aberto o suficiente para envolver as diferentes tribos que compunham a oposição, como foram os protestos políticos de 2013 no Brasil. Mas, após uma experiência com Bolsonaro, os problemas ganharam contornos, e essa frente ampla contra a esquerda se desgastou. Era preciso ser objetivo e recortar melhor a questão do momento sem evidenciar a simples obrigação de ser oposição.

Mas o erro cometido por Bolsonaro em 2022 foi repetido por Lula: a tentativa de estocar poder. Os ativos políticos envelhecem cada vez mais rápido. Um dia Lula foi novidade, com o PAC, Minha Casa Minha Vida, Bolsa Família e outras estratégias inovadoras. Mas aí volta um governo que já conhecemos, com a mesma cara do Lula 1 e 2.

Um fator crucial desafia os grupos políticos que tentam se perpetuar estocando poder: o apelo à novidade. Tudo o que é novo possui o fascínio da possibilidade, do “poder ser”. É o que zera todas as contas, de direita e de esquerda, obrigando ambas a renovar seu repertório político.

E com o embate entre Lula e Trump, a questão do momento muda de novo. Surge um outro Lula, uma nova faceta desse governo, com um apelo nacionalista que rearticula a questão da qualidade de vida: agora, precisamos nos unir ante um inimigo externo, que ameaça nossa economia e autonomia.

2026 será de quem compreender que esse novo inimigo exige nova oposição e situação. Quem ainda tenta estocar poder, repetindo discursos e estratégias de antes do tarifaço, correrá o risco de se tornar anacrônico. Resta observar qual será a próxima frase a estampar bonés.

Pedro Carneiro, graduado em Publicidade e Propaganda, pós-graduado em Marketing Estratégico, Branding e Mídias

Os artigos publicados não refletem a opinião de O POPULAR. Sua publicação obedece ao propósito de estimular e fomentar a diversidade e o debate de temas locais, nacionais ou mundiais.

A guerra dos bonés

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Pedro Carneiro

A cadeia produtiva do leite é uma das mais importantes forças do agronegócio brasileiro. Goiás, em especial, tem se consolidado como referência nacional, reunindo produtores, indústrias e instituições comprometidas em tornar o setor cada vez mais competitivo, inovador e sustentável. O leite é, ao mesmo tempo, alimento, renda e oportunidade. E é no campo que se decide grande parte do futuro econômico e social do nosso Estado.

O desafio que está posto é claro: manter a rentabilidade da atividade e evoluir continuamente em produtividade. Em um mercado globalizado e cada vez mais exigente, não há espaço para improviso. É preciso profissionalização, eficiência e capacidade de inovar. E é justamente nesse ponto que as tecnologias e os sistemas modernos de produção se tornam indispensáveis.

Da ordenha mecanizada à gestão integrada de dados, a evolução da pecuária leiteira passa, necessariamente, pela adoção de soluções que aumentem a qualidade e reduzam os custos, garantindo competitividade para os produtores. O Interleite 2025, que mais uma vez acontece em Goiânia, é a expressão desse movimento. Trata-se de um espaço estratégico de aprendizado, troca de experiências e geração de negócios.

Durante dois dias, especialistas, produtores, pesquisadores e empresas se encontram para discutir caminhos e apresentar soluções que apontam para um futuro de ainda mais produtividade e inovação. Goiás, ao sediar novamente esse encontro, reafirma seu protagonismo na cadeia do leite e sua vocação para liderar esse processo de transformação.

Nesse contexto, incluir mais produtores nesse futuro não é apenas uma meta justa — é decisão estratégica. Cada pequeno empreendedor que tem acesso à tecnologia, à informação e à gestão eficiente representa um ganho para toda a cadeia. É renda que se multiplica, emprego que se mantém no interior e desenvolvimento que chega a diferentes regiões.

O Sebrae Goiás atua justamente para que essa inclusão produtiva aconteça de forma concreta. Nosso trabalho vai da capacitação em gestão às consultorias técnicas especializadas, passando pela orientação no acesso ao crédito e pelo estímulo ao cooperativismo. Somos o elo entre o conhecimento e a prática, entre a inovação e a realidade do campo.

Quando um produtor passa a gerir sua fazenda com visão empresarial, o que se transforma não é apenas a sua propriedade — é toda a comunidade ao seu redor. O futuro do leite brasileiro será ainda mais sólido se for construído de forma ampla e integrada. Goiás mostra, a cada edição do Interleite, que está preparado para ser referência nessa jornada.

E o Sebrae, junto aos parceiros do setor, reafirma seu compromisso de seguir fortalecendo o produtor, impulsionando a produtividade e garantindo que o desenvolvimento chegue a todos os elos dessa cadeia tão estratégica para o Brasil. Esse é o verdadeiro valor de incluir.

Antônio Carlos de Souza Lima Neto, diretor Superintendente do Sebrae Goiás

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A força produtiva do leite

Antônio Carlos de Souza Lima Neto

A infância, tal como concebemos hoje, é uma construção relativamente recente. Até o final do século XIX, a criança era vista sobretudo como força de trabalho em miniatura, um pequeno adulto. Não havia a concepção de um período de vida protegido e dedicado ao desenvolvimento.

Foi com o avanço da Revolução Industrial, permeado por ideias dos movimentos humanistas e iluministas sobre educação, saúde e direitos humanos, que a infância passou a ser reconhecida como uma etapa distinta, merecedora de cuidados, proteção e espaço para o brincar. O século XX foi palco de grandes conquistas dos direitos das crianças e adolescentes, e o ECA celebra esses avanços. A garantia desses direitos exige adultos capazes de se responsabilizarem pelo desamparo infantojuvenil.

No entanto, homens e mulheres, por motivos diversos, sentem raiva ou desprezo por essa função intensa de cuidado. Crianças e adolescentes dão trabalho mesmo. É preciso construir caráter diariamente, juntamente com a geração que nos sucede, além de providenciar um contexto cuidadoso e educativo e estar atento à proteção e à manutenção da vida.

Para evitar o trabalho árduo e contínuo de cuidar, alguns lançam mão de uma defesa perversa, recusando-se a vivenciar a responsabilidade do adulto cuidador e atacando simbolicamente e concretamente a infância: erotizando-a, sobrecarregando-a de responsabilidades ou pressionando-a a amadurecer antes do tempo. O desejo é que “cresçam logo”, que deixem de exigir presença, paciência e afeto.

Esse processo, conhecido como adultização, é uma forma sutil, mas devastadora, de abandono e tem um custo psíquico profundo. Na perspectiva de Winnicott, a criança privada de um ambiente suficientemente bom é forçada a desenvolver um falso self: uma adaptação precoce às expectativas e demandas externas, construída para sobreviver.

O preço é a perda de espontaneidade, de autenticidade e de uma base sólida para o amadurecimento emocional. Quando adulta, carrega uma insegurança difusa e uma identidade fragmentada, sempre moldada para agradar ou se proteger, mas nunca para simplesmente ser.

O mercado e o capital entram violentamente nessas brechas de um self frágil e inconsistente e investem fortemente em pesquisas para dominar as demandas desse público, que precisa consumir para compensar a experiência de irrealidade e, de alguma forma, pertencer.

Em vez de garantir experiências de desenvolvimento, a infância é frequentemente substituída por possibilidades de consumo: brinquedos que imitam objetos adultos, roupas sexualizadas, rotinas lotadas de atividades produtivas e exposição precoce às redes sociais. A criança é empurrada para o ter e o pertencer, que passa a depender do consumo de ícones comuns ao grupo. Nessa lógica, a subjetividade cede espaço à performance, e a vida interior é trocada por uma vitrine de comportamentos e imagens.

Adultizar uma criança é, em última instância, negar-lhe o direito de existir no seu próprio tempo. É condená-la a viver numa pressa que não é dela, numa vida que não pôde escolher. Note que precocidade é diferente de amadurecimento: a mente se constitui numa pseudocapacidade de se virar, e não na possibilidade de criar uma personalidade capaz de aproveitar as etapas da vida e lidar com as dificuldades inerentes a cada uma delas.

Como indivíduos e sociedade, precisamos encarar que proteger a infância se faz urgente, é responsabilidade ética inadiável. Acreditar que estamos trocando trabalho e dedicação por sofrimento intenso e impensável pode nos encorajar nessa missão.

Maysa Balduino, psicanalista clínica, membro associada da SBP Goiânia e professora de Teoria Freudiana

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Adultização: abandono disfarçado

Maysa Balduino

O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou parcialmente inconstitucional o artigo 19 do Marco Civil da Internet, redesenhando a responsabilidade das plataformas digitais por conteúdo de terceiros. A partir da decisão, essas empresas poderão ser responsabilizadas mesmo sem ordem judicial - bastará a inércia diante de uma notificação privada sobre conteúdo ilícito.

Apresentada como avanço no combate à desinformação e aos crimes digitais, a medida reconfigura o ecossistema da comunicação digital, com efeitos que não se limitam às ‘big techs’ - criadores de conteúdo, marcas e perfis comerciais passam a operar sob nova lógica de vigilância e risco.

A responsabilização, antes condicionada à intervenção judicial, passa a ser presumida em critérios internos, automatizados e unilaterais - sem participação do Judiciário. A moderação, antes facultativa, agora será dever jurídico e a neutralidade que lhes era garantida por lei, assume contornos de conceito em declínio.

Expressões como “dever de cuidado” e “falha sistêmica”, utilizadas na decisão, são vagas, mas carregadas de força normativa. Substituem critérios objetivos, como a exigência de ordem judicial, por margens elásticas de interpretação. É nesse vazio semântico que surge espaço para a exclusão de conteúdos incômodos, ainda que lícitos. A liberdade de expressão se torna vulnerável à supressão disfarçada de proteção.

A monetização, - que já embasava responsabilização judicial em caso de dano - se torna um sinal preventivo de risco. Impulsionamento vira agravante. Opiniões e críticas, antes toleradas, podem ser removidas com base em análises opacas orientadas pela mera lógica da precaução.

A censura não será clara - estará sob o rótulo de ‘moderação proativa’: silenciosa, parametrizada, sem contraditório ou transparência. Sua legitimidade se sustentará em pareceres internos e decisões automatizadas, técnicas na forma e políticas no efeito.

A repercussão internacional não tardou. Dias após o julgamento, o presidente dos EUA, Donald Trump, anunciou tarifa de 50% sobre todas as exportações brasileiras, em razão de “ataques insidiosos do Brasil à liberdade de expressão dos americanos” - uma referência direta às ordens de remoção emitidas pelo STF a plataformas norte-americanas.

Uma sanção política disfarçada de medida econômica. Um lembrete de que a soberania regulatória tem preço e, neste caso, foi cobrado em retaliação diplomática. É urgente enfrentar os abusos digitais, mas é igualmente essencial proteger garantias fundamentais. Quando o combate ao crime serve de pretexto para a supressão de direitos, a linha entre legalidade e autoritarismo já foi rompida.

Aos criadores de conteúdo, um alerta sereno, embora firme: revisem seus contratos. Atualizem suas políticas, mas, sobretudo, não se escondam. Organizem-se. A articulação coletiva será cada vez mais necessária. A responsabilidade agora é difusa. Mas a resistência - e a coragem - também precisam ser compartilhadas.

Aline Sena Barcellos é advogada, especialista em Direito da Influência. Pós-graduada em Direito Processual Civil e Direito da Moda. Presidente da Comissão Especial de Direito da Moda da OAB-GO

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