Os dois últimos livros de Emmanuel Carrère somam nada menos que 1.700 páginas. “Vers le Réel” (Rumo ao Real) tem uma boa parte do que publicou até agosto passado. “Kolkhoze”, lançado no mesmo mês, traz suas memórias precoces —tem 67 anos—, com ênfase nas críticas a sua mãe, a historiadora Hélène d’Encausse.Seu público é tão grande quanto as páginas que publicou. Como boa parte de seus 16 livros anteriores, os dois calhamaços chegaram ao topo da lista dos mais vendidos. Só Michel Houellebecq é mais lido que ele, mas o prestígio de ambos é menor que o de Annie Ernaux.Seu tema por excelência é ele mesmo, Carrère. Ególatra militante, descreveu seus divórcios, viagens, a depressão bipolar —internou-se quatro meses num hospital psiquiátrico e tomou eletrochoques—, a prática de ioga, a meditação budista, a conversão ao cristianismo.Sua segunda predileção é por tipos bizarros. Os mais esdrúxulos são o húngaro András Toma, preso pelos russos na Segunda Guerra Mundial e internado num manicômio por 55 anos, e Claude Roman, que se fingiu de médico 18 anos e, na iminência de ser desmascarado, matou a mulher, os filhos, os pais e o cachorro.Seu uso contínuo da primeira pessoa realça a trombada dos perfilados patéticos contra a racionalidade de quem os perfila. O Carrère dos livros é um personagem, um eu narrativo que confessa seus podres com candura autodepreciativa, desdramatizando o que lhe passa pela frente. A encenação da sinceridade, reconheça-se, é melhor que a atitude literária na moda, a exibição espalhafatosa da intimidade.“Kolkhoze” passeia ao léu. Diz que Emmanuel Macron não sua nunca; Jean-Luc Godard foi de direita; sua prima foi eleita presidente da Geórgia, a antiga república soviética; a Academia Francesa é pródiga em salamaleques; seu pai teve uma amante; sua namorada é bacana. Etc., etc., etc.Tudo isso é dito com platitudes monocórdicas, sem sobressaltos, por um narrador que boceja diante do mundo e da vida.Sua indiferença parece ter sido herdada da mãe, que segundo ele “não tinha nenhum gosto pelo mundo sensorial, a textura e a palpitação das coisas”.A insensibilidade em relação a tudo e todos é anunciada numa frase perdida no início do livro, que contudo dá o tom às 500 páginas que se seguem. “Faço parte das pessoas, cada vez mais numerosas, convencidas de que nos aproximamos de uma catástrofe histórica sem precedente, o colapso de nossa civilização se somos otimistas e, se pessimistas, a extinção de nossa espécie”.Comentar o apocalipse com tal alheamento, entre vírgulas, não é corriqueiro. Mas, reconheça-se também, a percepção de que o final dos tempos vem aí está de fato aumentando. A frieza frente ao fim indica conformismo, mas ela é pior que simular indignação e apelar para a demagogia, estratégias da falecida literatura engajada?O melhor de “Kolkhoze” é o retrato da família de Carrère, aristocratas que fugiram da revolução bolchevique e recomeçaram do zero a vida na França. Contrariando Freud, Carrère enaltece o pai, executivo sensaborão de uma firma de seguros, e acerta as contas com a mãe, uma grande dama reacionária, autora de dúzias de livros sobre a Rússia.Quebravam uma janela em Moscou e lá estava ela, toda emperiquitada, explicando na televisão que o comunismo era intrinsicamente mal e perverso. Paparicada pela elite, acostumou-se a ver o mundo da sacada de um elegante duplex, à beira do Sena, que a Academia Francesa lhe cedeu por ser sua secretária perpétua.Uma revolta explodiu nas periferias parisienses, em 2005, e D’Encausse explicou que fora provocada por imigrantes africanos —adeptos da poligamia, eles entupiam os subúrbios de filhos. Para emporcalhar ainda mais sua imagem, a antiga imigrante sem eira nem beira estava de nariz empinado quando fez a avaliação na TV.Carrère não lembra dessa barbaridade em “Kolkhoze”. Mas recorda que ela escondeu que seu pai, o avô do escritor, colaborou com os nazistas na invasão da França e desapareceu no final da guerra; foi provavelmente executado pela Resistência, que sumiu com o cadáver.Lembra também que a mãe era comensal e entusiasta de Putin. Seu fascínio com homens poderosos independia da política. Até a véspera da invasão da Ucrânia ela garantiu que Putin jamais faria isso.Mãe é mãe, reza o ditado. Não para Carrère. Enquanto os obituários de Hélène D’Encausse fizeram média com a eminente historiadora, o anti-Édipo sacou-a do trono onde o status quo lhe fazia rapapés.