O Anuário Brasileiro da Segurança foi publicado (20/07). Algo de novo? Depende do efeito pedagógico. Porém, a pergunta a ser feita aqui não é sobre o que aprendemos, nesses últimos anos ou séculos, e sim o que nos tornamos.Ora, o anuário diz que a sociedade brasileira segue a cada dia mais racista, machista, misógina... A violência segue recalcitrante em gênero, número e grau. Todavia, agora o espelho reflete com um fulgor qualificado o rosto do país: (2022) – 74.930 mil estupros – 205 por dia – 8,5 por hora; 75% perpetrados contra pessoas vulneráveis (crianças e hipossuficientes de toda ordem); 70% ocorrem dentro de casa... Enfim, o maior índice desse tipo de crime da série histórica, além da altíssima subnotificação – apenas 8, 5% dos estupros no Brasil são reportados à polícia (IPEA). Tudo isso sem contar especificamente o feminicídio (1.400 casos registrados).As causas também seguem o fluxo da estupidez, da perversão e da hipocrisia, como se disséssemos todos que é mais fácil lutar por princípios do que viver por eles – 67% acreditam que a violência sexual acontece porque os homens não conseguem controlar seus impulsos naturalmente, ou seja, a culpa é da própria vítima; 58% culpam o álcool ou outras drogas; e 32% atribuem a surtos psiquiátricos mentais.O que fazer diante de tanta vilania, despudor e perversão moral? Sei que muitos nutrem suas esperanças por leis mais rígidas, maior aparato estatal de proteção à mulher; grande parte confia na inexorável “lei da cadeia”: “lá a purgação de todos os seus delitos, entre verdugos, justiceiros e anjos de almas fétidas, aqui e agora, o céu pode esperar!”.Todavia, cumpre dizer que a crise moral em todo Ocidente tem três premissas convergentes: permissividade, transgressão e banalização. Dostoiévski, em Os Irmãos Karamázovi, traz a fiel ilustração da primeira: “Se Deus estivesse morto e não houvesse vida futura, nada mais seria imoral, e tudo seria permitido”; a segunda, escrita nas paredes da Sorbonne/Paris, em 1968, virou tema afamado de Caetano Veloso: “É proibido proibir”; e a última, mais deletéria, descreve a luxúria como algo indomável da natureza humana, como fez o advogado de Bill Clinton X Monica Lewinsky, ao inquirir o Congresso Norte-americano: “É possível parar uma enchente colocando o dedo no dique?”.Com efeito, a violência brasileira transcende os números secos do Anuário. Revela no que estamos nos tornando dia a dia. A moral é prima virtude, o moralismo é torpe vício. Só o ideal resiliente de um coração puro e de um espírito inabalável, aspirado para dentro de todos nós, pode nos salvar desse estupro do estupro de consciência.