A decisão do governador Ronaldo Caiado (DEM) de romper com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) após 17 meses de aliança teve mais ingredientes do que apenas a irritação com o pronunciamento presidencial da noite de terça-feira (24) sobre o coronavírus. Aliados políticos do democrata apontam que a insatisfação com a demora em um socorro financeiro ao Estado e a tendência de isolamento e desgaste de Bolsonaro pesaram na posição anunciada nesta quarta-feira pelo governador.Embora o democrata tenha dito que sua atitude partiu de “sua consciência”, sem alinhamento com os demais governadores ou acertos com outras lideranças, a avaliação no meio é de que houve cálculo político, inclusive por conta de movimentos na mesma direção de críticas a Bolsonaro por parte dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, ambos do partido de Caiado.A decisão do democrata ganhou destaque nacional por ele ser, até então, o principal aliado do presidente entre os governadores, um dos poucos líderes políticos do DEM a defender o apoio oficial do partido ao governo federal e por ter indicado Henrique Mandetta, seu grande amigo e ex-colega da faculdade de Medicina, para o Ministério da Saúde.Em um duro discurso em entrevista coletiva convocada para a manhã de ontem, Caiado apontou “irresponsabilidade, desrespeito e ignorância” do presidente. Disse que passou a noite refletindo sobre o pronunciamento e pensando se toda a comunidade científica estava errada.Na TV, Bolsonaro voltou a criticar o confinamento e “histeria”, pediu reabertura de comércio e escolas e defendeu o chamado isolamento vertical, com separação apenas dos idosos e demais grupos de risco. Disse que, como atleta, teria apenas um “resfriadinho” se fosse contaminado. E atacou governadores que decretaram isolamento horizontal. Caiado foi um dos primeiros a determinar o fechamento de comércio e escolas.Caiado se irritou especialmente porque o pronunciamento de Bolsonaro ocorreu no mesmo dia em que houve videoconferência dele com governadores do Centro-Oeste. O democrata havia considerado que o presidente tinha recuado na posição de enfrentamento aos governadores. Tanto que, em entrevista ao POPULAR na terça-feira, mesmo diante da insistência para que se posicionasse sobre os discursos do presidente, ele evitou o embate.“Eu como médico e governador, não posso admitir e concordar com um presidente que vem a público sem ter consideração e respeito com seus aliados. Fui aliado de primeira hora, durante todo o tempo. Mas não posso admitir que venha agora um presidente da República lavar as mãos e querer responsabilizar outros por um colapso econômico ou por uma falência de empregos que amanhã venha acontecer. Não faz parte da postura de um governante. O estadista tem de ter a coragem de assumir as dificuldades no momento em que passa. Se existem falhas na economia, não tente responsabilizar outras pessoas. Assuma a sua parcela”, disse.Caiado abriu o comunicado, de 15 minutos, com frase do ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama, que, segundo ele, o marcou muito: “Na política e na vida, a ignorância não é uma virtude”. Depois voltou a citar a expressão quando reclamou das expressões “resfriadinho e gripezinha” do presidente. Ao abordar mais claramente o rompimento, o governador disse que só vai falar com o presidente por comunicados oficiais, seguindo o mesmo comportamento dele.Caiado também criticou empresários que só pensam em perdas de lucros. “Alguns, a minoria, só enxergam dinheiro, gananciosos que são. Não defendem a vida, mas a sua indústria ou empresa. São vorazes pelo lucro.”RRFAo ser questionado se a decisão de rompimento não poderia dificultar a busca por um socorro financeiro vindo do governo federal, o governador reforçou a insatisfação antiga: “Há 14 meses eu busco essa saída para Goiás. Fizemos todas as exigências, cumprimos todas as etapas, que o Tesouro Nacional impôs. Qual solução foi dada? Estamos sobrevivendo por decisões do Supremo Tribunal Federal”.“Esse estrangulamento fiscal não é diferente de quando assumi. Nós saberemos enfrentar. Saberei continua recorrendo ao Supremo Tribunal Federal e ao Congresso para avançar naquilo que os Estados precisam”, completou.O governador refere-se a dois programas de ajuda financeira aos Estados: o Regime de Recuperação Fiscal (RRF), criado em 2017, e o Plano de Equilíbrio Fiscal (PEF), cujo projeto de lei está em tramitação na Câmara desde junho do ano passado.Goiás chegou à etapa final dos procedimentos para pedir oficialmente a adesão ao RRF, mas ainda não há perspectiva de ingresso ao programa, em especial porque o Estado não cumpre o requisito de autorizar a privatização da Saneago.Até aqui, Goiás só conseguiu fôlego nas finanças por conta da liminar do ministro Gilmar Mendes, do STF, que permitiu que o Estado não pague dívidas com bancos e não seja penalizado pela União, e também autorizou a gestão a tentar ingresso no RRF. A liminar é de junho, já foi adiada até abril e Goiás pediu alargamento do prazo, ainda sem resposta do ministro.DecretosO governador reforçou que os decretos assinados por ele seguirão em vigor e que a possibilidade de flexibilização só será avaliada mais adiante. “Não tomamos uma medida que não fosse muito bem discutida, com toda a comunidade científica, com colegas médicos, com toda a área da saúde, com todos que têm experiência em outros países. Saberemos flexibilizar as restrições no momento certo. As decisões do presidente da República no que diz respeito ao coronavírus não alcançam o Estado de Goiás. Decisões serão tomadas por mim, lavradas pela Organização Mundial de Saúde e pelo corpo técnico do Ministério da Saúde”, afirmou.O governador reafirmou que é possível pensar na saúde da população ao mesmo tempo em que se minora o impacto negativo do isolamento social na economia. “Podemos fazer as duas coisas. Cada líder tem condições de liderar o seu povo e criar condição de minorar dificuldades.”