Há um ano, no dia 24 de fevereiro, a Rússia invadia a Ucrânia. O POPULAR ouviu então dois especialistas sobre as causas e os prováveis desdobramentos do conflito: Ronaldo Carmona, doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP), professor de Geopolítica da Escola Superior de Guerra (ESG) e senior fellow do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), e Carlo Patti, historiador, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Goiás (UFG). Ambos voltam a falar ao jornal, agora avaliando as estratégias de guerra, a “inesperada” resistência ucraniana, os objetivos da Rússia, o apoio da Otan (aliança militar ocidental) à Ucrânia, o fortalecimento dos laços entre Pequim e Moscou, e a posição do Brasil, com a proposta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de um “clube da paz” para mediar uma solução para a guerra.Um ano após a invasão da Ucrânia pela Rússia, como avaliar a resistência ucraniana?Carlo Patti – A resistência ucraniana era inesperada, ao menos no começo da guerra, quando muitos acreditavam que seria uma guerra relâmpago com uma conclusão muito rápida devido a uma falta de resistência por parte da Ucrânia. O que vemos é uma capacidade grande de resistência das Forças Armadas ucranianas que estão combatendo para defender o próprio território perante a agressão russa, e que foram fortemente apoiadas pelo Ocidente, os países da Otan, da União Europeia. A resistência é fruto de uma estratégia ucraniana que, ao contrário da Rússia, tem sido acertada.Ronaldo Carmona– Primeiro, é preciso ter em conta os traços gerais da identidade nacional ucraniana, se é que podemos dizer isso, afinal, a Ucrânia, além de berço da civilização russa, é um país que no período contemporâneo é cindido etnicamente, havendo consequências políticas nessa cisão, justamente o fato de que a leste do Rio Dnieper quase toda a população dita ucraniana é de etnia russa, fala russo, tem cultura russa. Por outro lado, a porção da Ucrânia a oeste do Rio Dnieper, em especial cidades como Kiev e Liviv, tem nativos de etnia e expressão ucraniana. Isso se refletiu desde o fim da União Soviética, desde a Ucrânia ao fim de 1991, numa divisão política e ideológica, pode se dizer assim, no ambiente político ucraniano. A metade a leste, basicamente, com vitória de partidos pró-Moscou e maior influência russa, e do outro lado, mais a oeste, vencem partidos com tendências ocidentalizantes. Liviv, cidade mais ocidental da Ucrânia, foi parte do império austro-húngaro e atualmente está sob forte influência da Polônia. Enfim, a identidade nacional ucraniana é bastante frágil. Segundo aspecto, do ponto de vista militar, a Ucrânia acaba sendo a principal vítima de uma movimentação geopolítica mais ampla que é a expansão da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) para as fronteiras da Rússia. Clássicos geopolíticos americanos diziam que ao fim da Guerra Fria os Estados Unidos deviam ter uma geoestratégia no sentido de não permitir que a Rússia se reerguesse como potência. Então, basta observar o movimento de alargamento da Otan em relação às fronteiras da Rússia. A assimetria de forças entre Ucrânia é Rússia é tamanha que, por isso, a expectativa do presidente russo Vladimir Putin e de muitos analistas, inclusive no Ocidente, era de que a vitória russa depois do 24 de fevereiro de 2022 (início da invasão) fosse relativamente rápida. Acontece que houve um massivo envolvimento da Otan de suporte ao governo de Volodimir Zelenski (presidente da Ucrânia) e, portanto, da parte mais a oeste da Ucrânia.Em relação à Rússia, qual tem sido a estratégia até aqui e o que esperar a partir de agora?Carlo Patti– A Rússia cometeu muitos erros estratégicos, tentou envolver a Ucrânia numa guerra total para quebrar a resistência, mas isso não foi possível. É uma estratégia que fracassou até aqui, porque era de uma guerra relâmpago e controle total, mas resultou na perda de muitas posições que tinham ganhado, em recuos. A estratégia atual russa é aquela de dar golpes à Ucrânia atingindo a todos, inclusive civis, ou seja, não se limita a atingir objetivos militares, como é o caso dos ucranianos. Os russos estão destruindo as cidades, impondo a russificação dos territórios ocupados, e aumentando também a capacidade e a vontade de resistência da população local.Ronaldo Carmona– Temos que retroceder a dezembro de 2021 para avaliar a estratégia russa, quando Putin faz publicar uma proposta à Otan de um equilíbrio estratégico que atendesse às preocupações russas relacionadas ao seu território, às suas fronteiras e, ao mesmo tempo, da não deflagração da guerra. Essa proposta foi ignorada pela Otan. A Rússia se sentia ameaçada em uma região que historicamente faz parte do país e pedia salvaguarda a essa região. Os grandes países, o Brasil inclusive, têm grande sensibilidade em respeito a seu território que precisa ser atendida para que não seja cruzada uma linha vermelha. Eu diria que a Rússia busca esse objetivo inicial de criar uma zona tampão, um área de amortecimento para que não haja uma ameaça direta da Otan a seu território. É isso que continua sendo perseguido, o que inclui a presença russa na região de maioria étnica russa no litoral ucraniano.A decisão da Rússia de suspender participação no último acordo de controle de armas nucleares com os Estados Unidos é uma ameaça de agravamento do conflito?Carlo Patti– A Rússia abandonou de maneira unilateral o novo Start, tratado de redução de armamentos estratégicos que impunha limites mútuos para controlar arsenais nucleares das duas superpotências, Estados Unidos e Rússia, o que garantiria não ultrapassar arsenais nucleares atualmente existentes. Essa decisão reforça a desconfiança em relação aos Estados Unidos, principais apoiadores da Ucrânia na Otan. Mas a Rússia declarou, embora isso não possa ser verificado, que não ultrapassará o limite que tinha sido acordado. Acredito que Putin se manterá cauteloso quanto ao uso de armas nucleares, porque isso provocaria imediata retaliação dos Estados Unidos e implicaria também numa reação provável da China, que é próxima à Rússia, mas quer evitar qualquer tipo de uso de armas nucleares. A saída marca o fim de 50 anos de um diálogo estratégico entre Moscou e Washington, se considerarmos que os primeiros acordos foram assinados pela primeira vez entre 1972/1973. Mas o problema das bombas atômicas continuaria mesmo com a presença dos dois países no novo Start, o que aumenta é o perigo com a saída da Rússia. O uso de armas nucleares é uma ameaça para toda a humanidade.Ronaldo Carmona– Isso tem a ver com a situação geral da guerra, porque cada vez mais a Otan que, num primeiro momento dissimulava seu envolvimento, hoje já assume isso sem reservas. Nos campos da Ucrânia, pode-se dizer que é travada uma guerra entre Otan e Rússia, o que faz com que a Ucrânia, na sua porção mais Ocidental, mais vinculada a Kiev, tenha capacidade de resistir apesar da enorme assimetria de forças. Então, essa decisão russa sobre o controle de armas nucleares representa uma resposta à decisão da Otan de enviar à Ucrânia armamento de grande porte, inclusive carros de combate Leopard, materiais antiaéreos e mísseis de longo alcance. A Rússia reage a essa situação anunciando que se sente livre de ver inspecionadas suas instalações nucleares por meio do acordo Start. Isso tem a ver com movimentos que redundam em crescente escalada da guerra.Nesta quarta-feira (22), China e Rússia se comprometeram a reforçar sua parceria estratégica em uma visita do chefe da diplomacia chinesa, Wang Li, ao presidente Vladimir Putin. O apoio, ou não, da China é decisivo para o desfecho da guerra?Carlo Patti– A China não quer que a guerra ultrapasse os limites e tem uma parceria estratégica com a Rússia mesmo se até o momento não forneceu qualquer tipo de arma aos russos. Temos de considerar que a China se absteve de qualquer tipo de condenação à Rússia, mas declarou a necessidade de retomada do diálogo entre Rússia e Ucrânia, e também do respeito à soberania nacional e integridade territorial da Ucrânia. O fortalecimento da parceria estratégica, que não significa uma aliança explícita entre Pequim e Moscou, é um sinal forte para o Ocidente, sobretudo em momento de maior tensão entre Estados Unidos e a China.Ronaldo Carmona– Basta lembrar que em 4 de fevereiro de 2022, portanto, vinte dias antes da deflagração da guerra, numa visita a Pequim, na abertura dos Jogos de Inverno, Putin e Xi Jinping (presidente da China) assinaram uma declaração de aliança estratégica maior entre os dois países. Essa parceria vem se aprofundando ao longo desse um ano de guerra. Veja como a própria Rússia vai recambiando à China as vendas, em especial de gás e petróleo, que deixou de fazer ao Ocidente. Vemos uma relação cada vez mais estreita na aliança de cooperação de Xangai, da União Econômica Euroasiática e do projeto da nova rota da seda da China. A visita na quarta-feira, 22, do chanceler a Moscou é um passo a mais nessa parceria geoestratégica desses dois gigantes da Eurásia, China e Rússia, que é o principal pesadelo da geopolítica clássica americana.EUA e Europa têm escalado ajuda militar à Ucrânia. E o presidente dos EUA, Joe Biden, fez uma viagem a Kiev. Esse apoio ocidental tende a se ampliar?Carlo Patti– Os Estados Unidos, os países europeus, da Otan e daquele que pode ser considerado o Ocidente ampliado, incluindo o Japão, condenaram desde o começo a agressão russa à Ucrânia, prestaram apoio logístico, militar, no sentido de fortalecer a Ucrânia militarmente e garantir novas tecnologias, recursos materiais. Esse apoio ocidental tende a se ampliar no sentido de que a Ucrânia está recebendo mais e mais recursos, novas armas, mas que não poderão atingir a Rússia em seu próprio território, embora vão permitir uma resistência e levar a Rússia a recuar um pouco mais em relação às próprias posições. É importante esse apoio, com tecnologias alemãs, italianas, francesas, americanas, para um recuo máximo da Rússia e, nesse caso, chegar a uma mesa de negociação. Mesmo sem ser previsível o fim dessa guerra, que será uma guerra longa, mas provavelmente se resolverá diplomaticamente. Não sabemos quais serão as partes que conseguirão levar a uma mesa de negociação e, finalmente, a uma solução.Ronaldo Carmona– Esse apoio militar tem sido decisivo nesse um ano de guerra e para fazer com que o desfecho da guerra não esteja no horizonte, uma vez que, das duas partes em guerra, um lado não consegue, do ponto de vista militar, se sobrepor ao outro. A visita do Biden a Kiev, que não foi tão de surpresa assim porque houve comunicação diplomática aos russos para garantir que a capital não fosse bombardeada enquanto o presidente americano estivesse lá, foi uma operação de propaganda. Se o apoio ocidental vai se ampliar, é uma discussão do caráter geral da guerra: se o cenário atual não permite apontar uma solução do ponto de vista militar, de um lado se impor sobre o outro, então, sem dúvida, a tendência é escalar com risco de um confronto direto e aberto entre Otan e Rússia que poderia redundar em perda de controle e até no uso de artefatos nucleares, no que seria o pior dos mundos para a humanidade.A pretendida adesão da Ucrânia e de países vizinhos, como a Finlândia, à Otan é viável em curto prazo?Carlo Patti– Acredito que a adesão da Ucrânia à Otan não seja viável, poderá ter uma forma de parceria entre a aliança atlântica e a Ucrânia, mas não a própria entrada. Haveria grande cautela de muitos países membros, com possível oposição da Hungria, que não esconde proximidade com Moscou. No caso da Finlândia e da Suécia, a maioria dos países da Otan deu aval aos pedidos de entrada à aliança, quebrando uma tradicional neutralidade sueca e finlandesa desde a Segunda Guerra Mundial. Mas precisamos lembrar que para o acesso de novos membros precisamos da aprovação de todos os países membros da Otan. Nesse caso, o maior empecilho, sobretudo em relação à Suécia, é a Turquia, particularmente crítica à linguagem agressiva do atual governo sueco, de direita, mais nacionalista e conservador, em relação ao islã. Para a Finlândia, não vejo grandes dificuldades de entrada efetiva no pacto atlântico e, posteriormente, na Otan.Ronaldo Carmona– A adesão da Finlândia está em curso, mas está a 1,6 mil quilômetros da fronteira com a Rússia e não é, por razões geográficas e militares, a parte mais sensível das fronteiras, que é a Ucrânia, desde Napoleão, passando pela Segunda Guerra. Mas o assédio da Otan aos países da fronteira russa prosseguirá, o que é uma das causas fundamentais da eclosão da guerra.Qual o peso da aprovação pela Assembleia-Geral da ONU nesta quinta-feira (23) de uma resolução que condena a invasão da Ucrânia pela Rússia e exige a retirada das tropas do país?Carlo Patti– Essa resolução faz parte do espírito das Nações Unidas e da Assembleia Geral, onde a enorme maioria dos países condena a invasão e também as atrocidades que estão sendo cometidas pela Rússia. Isso tem forte valor retórico e também ao confirmar a oposição da comunidade internacional à guerra. Se pensarmos nos países que se abstiveram e nos que se opuseram à resolução, vemos que o Ocidente não é mais a força principal do sistema internacional como apareceu ao longo dos últimos 30 anos e no auge da globalização, entre 1994 até a crise de 2008, pelo menos. Temos de ver aí um sinal claro de uma divisão do mundo em vários clubes.Ronaldo Carmona– A ONU é cada vez menos uma estrutura que tenha peso para impor suas decisões às nações do mundo, se é que algum dia teve. Em termos conceituais, não existe uma estrutura mundial que possa impor aos países soberanos uma ou outra decisão. Essa e outras resoluções das Nações Unidas devem ser lidas como uma declaração política, sem maiores consequências do ponto de vista prático. Mas é um gesto político forte, embora limitado pelo próprio placar de votação na Assembleia, onde grandes países chegaram a votar contra e outros tantos se abstiveram. Se fizer uma conta em termos de habitantes, verá que a maioria da população mundial não terá endossado essa proposição dos países ocidentais.O Brasil votou a favor da resolução da ONU que condena a invasão russa. O que isso sinaliza sobre a política externa do atual governo?Carlo Patti– O voto do Brasil está em linha com a tradição brasileira de ver a guerra como o mal maior no sistema internacional, ou seja, a tradição diplomática brasileira de se opor aos conflitos e às invasões. Na última declaração conjunta de Lula e Biden houve claramente a condenação à agressão russa, mas isso não quer dizer que o Brasil esteja se opondo totalmente à Rússia. A política externa brasileira é de um país ponte entre os que são de agrupamento subglobal ou de qualquer forma não ocidentais e o Ocidente. Essa é a peculiaridade do Brasil, ser um país que promove a paz, tem uma capacidade de promoção da paz, tem uma tradição brasileira de pensar na solução e de resolver conflitos na América Latina, e utilizar essa expertise também em outros âmbitos. É por isso que a política externa brasileira do atual governo é de mediação entre as que são do Ocidente e as que são parceiras, porque o Brasil é um dos protagonistas dos Brics, o que fica mais claro agora com figuras de prestígio internacional como Lula e Celso Amorim, pela percepção dessas lideranças no cenário internacional.Ronaldo Carmona– O Brasil tem tido uma posição de neutralidade em relação à guerra, desde o governo anterior e no atual governo, o que passa a ser agora uma neutralidade ativa. O Brasil passa a defender a criação de condições para uma saída política para a guerra, para a paz. Essa posição está em linha com a nossa tradição diplomática, de equidistância em relação aos conflitos. No que diz respeito à ONU, temos de entender o tipo de negociação, conduzida pelo Itamaraty, e de ambiente, diplomático, em que estão em questão regras de direito internacional. Natural que o Brasil tivesse posição mais legalista, não sem apresentar emendas para exigir certa moderação por parte da resolução e o reconhecimento da necessidade de pôr fim à beligerância. Importante é manter a tradição de manter distância de um conflito que não diz respeito diretamente ao interesse nacional brasileiro.O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) propõe a criação de um “clube da paz”, incluindo China e Índia, para tentar mediar uma saída pacífica. Quais as chances de adesão a essa proposta?Carlo Patti– O Brasil viu a possível adesão de alguns países à criação de um clube da paz, que foi fortalecida por alguns ganhadores do Prêmio Nobel. Acredito que a solução dessa guerra precisará ser diplomática, mas não é o Ocidente que poderá resolver isso. De fato, vemos um sistema internacional que não é mais dominado pelo Ocidente. Mesmo se os Estados Unidos como primeira potência atlântica demonstrarem que podem garantir uma aliança coesa e compacta no âmbito atlântico, a medição será própria de países não ocidentais, ou caberá a eles fazer isso. China e Índia, mas sobretudo o Brasil como uma liderança que tem boas relações tanto com o Ocidente quanto com o Leste, o resto do mundo. Essa poderá ser o começo de uma proposta com boas perspectivas de vingar no futuro.Ronaldo Carmona– O que estou chamando de neutralidade ativa do presidente Lula começa a apresentar resultados, a reverberar na ONU, por um lado e, por outro, na declaração do vice-chanceler da Rússia. É um ponto positivo, hoje a China por sua vez apresenta também uma proposta de paz. Um ano após a deflagração começam, portanto, a aparecer propostas para levar ao fim do conflito. Evidentemente, não podemos ter um entusiasmo ingênuo sobre as chances de isso prosperar no curtíssimo prazo, afinal de contas, como tenho dito, as causas que levaram ao início da guerra continuam sobre a mesa, o grande problema étnico ucraniano, a sensibilidade territorial da federação russa, ao mesmo tempo, a reafirmação da Otan da sua expansão. Enquanto essas causas não forem enfrentadas, dificilmente veremos uma paz consolidada. De todo modo, é importante valorizar a iniciativa do presidente Lula porque mostra o retorno do Brasil aos grandes temas da geopolítica mundial que afetam a segurança global.Leia também:- Lula reforça sugestão de grupo para negociar fim da guerra na Ucrânia- Primeiro ano da Guerra da Ucrânia consolida nova ordem mundial