Na terceira ação judicial contra o modelo de parceria com a iniciativa privada para execução de obras rodoviárias implantado pelo governo de Goiás, dez promotores de Justiça com atuação em Rio Verde pedem anulação de termos de compromisso (tipo de contrato) do Estado com a Cooperativa Agroindustrial dos Produtores Rurais do Sudoeste Goiano (Comigo) e com a empresa Cereal Comércio Exportação e Representação Agropecuária, em valor total de R$ 327,9 milhões, para intervenções em três trechos de rodovias.A ação civil pública (ACP) protocolada na segunda-feira (3) na Vara das Fazendas Públicas, Registros Públicos e Ambiental de Rio Verde aponta burla ao dever constitucional de licitação e suspeitas de sobrepreço e de irregularidades na execução das obras. No documento, o Ministério Público de Goiás (MP-GO) pede decisão liminar de bloqueio de bens dos dois parceiros privados no valor de R$ 12,36 milhões que representam, segundo os promotores, cálculos de margem de lucro na execução das obras.O modelo de parceria privada criado pelo governo goiano também é alvo de ação direta de inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal, de autoria da Procuradoria-Geral da República, e de ação civil pública no Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO) que pede suspensão de termo de colaboração com o Instituto de Fortalecimento da Agropecuária de Goiás (Ifag), da Promotoria de Defesa do Patrimônio Público do MP-GO. Em ambas, houve concessão de liminares para suspender o modelo, mas com permissão para continuidade de contratos já assinados.A nova ação do MP-GO tem como base inquérito civil instaurado a partir de denúncia recebida na 4ª Promotoria de Justiça de Rio Verde, de suspeita de irregularidades na execução de obras de duplicação e pavimentação em rodovias estaduais da cidade custeadas com recursos do Fundo Estadual de Infraestrutura (Fundeinfra). O Fundeinfra foi instituído em lei estadual de 2022, com recursos oriundos da taxa do agro, e já arrecadou R$ 2,9 bilhões.A mais recente ação foca na modalidade de parceria em regime de compensação. O contribuinte da taxa do agro executa obras e fica com créditos do Fundeinfra. Trata-se de modalidade diferente da parceria com o Ifag, em que a entidade foi contratada com dispensa de licitação pelo governo para ser responsável pela execução de sete trechos rodoviários.A Comigo assinou com o Estado dois termos de compromisso: um de R$ 173,4 milhões para restauração, pavimentação, duplicação de estradas próximas ao anel viário do município e implantação de viaduto em trecho de acesso à Tecnoshow; e um de R$ 63,3 milhões para duplicação da GO-210, no trecho entre o perímetro urbano de Rio Verde e o trevo de entroncamento com a GO-174. Já o Grupo Cereal ficou responsável pela pavimentação da GO-401, em trecho entre Rio Verde e Quirinópolis, no valor de R$ 91,09 milhões.A titular da 4ª Promotoria de Rio Verde, Margarida Bittencourt da Silva Liones, assina a ACP com os colegas de outras oito promotorias da cidade mais o coordenador do Grupo de Atuação Especial do Patrimônio Público (Gaepp), Augusto César Borges Souza. O protocolo da ação não foi divulgado pela equipe de comunicação do MP-GO.Os promotores afirmam que os parceiros privados são “responsáveis estritamente pela gestão dos recursos e contratação da empresa executora, atuando como mera intermediária do ente público, sem previsão de qualquer responsabilidade em relação aos serviços executados”.“Evidencia-se verdadeira triangularização do processo de contratação para execução de obras, utilizando-se do contribuinte do Fundeinfra para contratação de empresa para execução de obras públicas, sem a exigência de licitação ou qualquer procedimento prévio que garanta a isonomia entre os interessados na execução do serviço e a escolha da proposta mais vantajosa, em evidente burla ao dever constitucional de licitar, previsto no artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal”, diz a ação.Além da burla à licitação, os promotores citam desrespeito a outros quatro princípios constitucionais: “O referido modelo de contratação compromete a impessoalidade e a moralidade administrativa, na medida em que transfere a particulares a prerrogativa de escolher a empresa executora de obra custeada com recursos públicos, sem que haja critérios objetivos, transparentes e previamente definidos em certame público. Igualmente, a eficiência administrativa resta também violada, pois a ausência de procedimento competitivo elimina a possibilidade de a administração selecionar a proposta mais vantajosa sob os aspectos técnico e econômico. Soma-se a isso o enfraquecimento do princípio da publicidade, dado que a estrutura de contratação paralela e privada dificulta o controle social e institucional sobre os gastos públicos, comprometendo a obtenção de parâmetros objetivos para controle do orçamento público”.Os promotores também contestam um dos principais argumentos do governo estadual, de que o modelo criado em Goiás é inspirado em lei federal (número 13.019/2014) do Marco Regulatório das Organizações das Sociedade Civil (OSCs). Segundo os argumentos apresentados, a cooperativa e a empresa “não ostentam a qualidade de entes privados sem fins lucrativos, condição indispensável para celebração de parcerias ou convênios, bem como há vedação expressa para celebração de contratos de concessão que tenha como objeto único a execução de obra pública”.A ação aponta ainda aumento de estimativas de preços e alterações de projetos das obras desde o período de aprovação pelo Conselho do Fundeinfra até a assinatura dos termos de compromisso, além de falta de previsão orçamentária ou demonstração de medidas compensatórias decorrente da respectiva renúncia de receita para sustentar as parcerias. A ação chama o modelo de “regime paralelo de execução de despesas públicas”.“O regime de compensação dos créditos do Fundeinfra, nos moldes vigentes, representa renúncia de receita e aumento de despesa pública sem previsão orçamentária, isto é, os termos de compromisso em análise diminuem a arrecadação de recursos previstos como receita no orçamento para execução de obras públicas sem previsão na lei orçamentária, sendo a operação realizada às margens do orçamento público e do dever de planejamento para sua execução”, dizem os promotores.A ACP também ressalta que os pedidos não se confundem com o objeto da ADI no Supremo nem configuram duplicidade de ações, citando o fato de o ministro Alexandre de Moraes (relator da ADI) ter esclarecido que a suspensão liminar do modelo não atinge contratações já realizadas. “A ADI tem por finalidade precípua a verificação abstrata da compatibilidade da norma com a Constituição Federal, enquanto a presente demanda visa à tutela concreta do patrimônio público e da moralidade administrativa, buscando a nulidade específica de atos jurídicos celebrados anteriormente à medida cautelar proferida e, portanto, vigentes”, dizem os promotores, citando a decisão de Moraes que indica que “eventuais irregularidades apuradas em casos concretos não serão objeto de análise desta Corte (Supremo), devendo ser examinadas pela Justiça comum”.TCE-GOAo citar suspeitas de “falhas estruturais” e “atrasos substanciais” na execução das obras, a ação aponta a recusa do Tribunal de Contas do Estado de Goiás (TCE-GO) em fornecer documentação de procedimento de acompanhamento de termos de compromisso do novo modelo. Os promotores fazem requisição judicial de cópia integral de processos do tribunal, em pedido liminar.O documento fala em vistorias realizadas pelo TCE-GO em obras em que foram constatadas possíveis falhas técnicas nos serviços executados com recomendação da equipe técnica da Corte de Contas para aperfeiçoamento de procedimentos e execução.“As próprias medidas adotadas demonstram que houve a constatação de falhas na execução dos serviços, as quais, por recomendação dos técnicos do TCE-GO, a empresa executora concordou em refazer alguns trechos da rodovia, o que reforça a suspeita de irregularidades no trecho inspecionado. Tal situação evidencia a ausência de benefícios nesse modelo de contratação e a fragilidade dos meios de fiscalização”, diz a ação.Os promotores relatam que houve pedido de documentação do tribunal em 18 de agosto e que, em 3 de outubro, o conselheiro Kennedy Trindade “limitou-se a informar que os autos de inspeção encontram-se em ‘fase inicial de instrução, com prazo para os jurisdicionados apresentarem suas defesas sobre as possíveis incongruências encontradas ainda sob a forma de indícios’, sem apresentar qualquer justificativa para o não encaminhamento de cópia dos procedimentos, nos exatos termos da requisição ministerial”.Em 6 de outubro, o MP-GO reafirmou o pedido da documentação e diz não ter recebido resposta, o que os promotores afirmam ser “uma injustificável negativa em fornecer documentos essenciais para instrução do inquérito civil que ensejou a propositura da ação civil pública”.A Procuradoria-Geral do Estado, responsável pela defesa do governo na ação, disse apenas que “adotará as providências pertinentes quando o Estado de Goiás for intimado no processo judicial em questão”.A Comigo afirmou, por meio da assessoria, que não comentará a ação. O grupo Cereal foi procurado por telefone e por e-mail, mas não respondeu aos pedidos de posicionamento sobre a ação.A assessoria do TCE-GO informou que não conseguiu contato com o conselheiro Kennedy Trindade no fim da tarde desta quarta-feira (5) para dar uma resposta sobre a reclamação feita pelos promotores.