Membro da Comissão de Direito Constitucional da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP), Marcello Fiore critica as declarações do governador de Goiás, Ronaldo Caiado (UB), contra o desembargador do Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO) Adriano Roberto Linhares Camargo. Em entrevista ao programa Chega pra Cá, o advogado classificou a fala do governador de “ameaçadora” e questionou a decisão do TJ-GO de afastar o magistrado.A polêmica começou no dia 1º de novembro, quando Camargo, durante julgamento da área criminal, criticou “abusos e excessos” de policiais militares e defendeu, em uma “reflexão pessoal” o fim da instituição. A primeira reação foi de Caiado, que publicou vídeo nas redes sociais com duras críticas ao desembargador, insinuação sobre relação do magistrado com o crime e pedido de impeachment. Para Fiore, há temor de que o cenário em Goiás demonstre que o Executivo influencia decisões do Judiciário.O desembargador Camargo, tendo em vista a Constituição, o Código de Ética e a Lei da Magistratura, cometeu um erro ao fazer a declaração sobre a PM?Inibir qualquer cidadão de dar sua própria opinião é inibir o Estado Democrático de Direito. Acontecia muito na época da Ditadura no Brasil, anterior à Constituição de 1988, a repressão às palavras e à opinião. Você não podia dar a sua opinião. Nós não vivemos nesse tempo mais. O desembargador tem todo direito do mundo de expressar sua opinião sobre o assunto que bem entender. Óbvio que, naquele momento, em que ele estava participando de um julgamento, a sua opinião era sobre, inclusive, um tema que estava sendo tratado naquele julgado. Ele deixou muito claro que aquilo era uma opinião pessoal. Todo mundo pode dar sua opinião pessoal, por mais esdrúxula que seja. Não estou dizendo que é esse o caso do desembargador Camargo. A gente tem ouvido na história recente do Brasil opiniões absolutamente fora do que seria razoável para um ser humano defender, inclusive sobre intervenção militar para garantia do Estado Democrático de Direito. São conversas recentes que a gente tem visto e isso é um absurdo. A partir do momento em que se dá sua opinião e se diz alguma coisa, você vai sofrer as consequências por aquilo. Agora, impedir de dizer é impedir a liberdade de expressão. E a liberdade de expressão está absolutamente garantida na Constituição Federal. Todo mundo sabe disso. E inclusive há discussão recorrente sobre esse assunto em tempos modernos. Então, sim. Óbvio que podemos dizer que ele não cometeu nenhum crime. Não cometeu nenhuma infração em dar a opinião dele como foi feito naquele momento.No caso do governador, Caiado começa sua fala afirmando que o desembargador não merecia ser chamando de “senhor” e, por isso, iria chamá-lo de “você”. Disse que o magistrado não poderia dizer aquilo e que ele estava ameaçando o Estado Democrático de Direito ao propor o fim da PM, pois a existência desta instituição está prevista no artigo 144 da Constituição. O senhor viu o vídeo do governador. Gostaria que o senhor analisasse esta fala.É uma fala ameaçadora. E isso não combina com o Estado Democrático de Direito. O desembargador em nenhum momento afrontou ou feriu o Estado Democrático de Direito com a sua opinião sobre o fim da Polícia Militar. Vamos ser razoáveis e entender que ele não simplesmente propôs o fim da Polícia Militar, mas propôs o fim de como ela está agindo, buscando outros meios – e essa é uma sequência da fala do desembargador Camargo – para que se atue de outra forma. Ele estava dando uma opinião sobre um assunto que, inclusive, é discutido no mundo inteiro, que é o tratamento ou a postura ostensiva da Polícia Militar em diversos rincões do planeta, para que ela cumpra sua função social de preservar a ordem pública em comunidades, das pessoas e tudo mais, mas sem função investigativa. Isso, aliás, é a grande discussão que pouca gente trouxe para essa conversa. Está se falando muito sobre a opinião do desembargador, a postura do governador, dizendo que (Camargo) ameaçou o Estado Democrático de Direito. Acho que o governador precisava dar uma olhadinha melhor na Constituição Federal ou conversar com seus assessores jurídicos, porque esse discurso não combina com o que está na Constituição. Na verdade, a Polícia Militar não tem, de acordo com a própria Constituição, a função investigativa. Isso não cabe à Polícia Militar. O artigo 144, parágrafo 5º, que foi citado pelo governador de Goiás, deixa muito claro que a Polícia Militar é uma polícia ostensiva de preservação da ordem pública. Então, a função investigativa não cabe à Polícia Militar. A PM não vai fazer como acontecia na época da Ditadura Militar. O Ato Institucional nº 5 (AI-5) permitia que se agisse dessa forma, de invadir a casa de qualquer indivíduo sem dar a ele liberdade de ficar em silêncio, de oferecer um advogado ou de se prosseguir através de um procedimento razoável, notificando o Ministério Público, pedindo uma ordem de investigação na casa, que é asilo inviolável do indivíduo. Então, a Polícia Militar de Goiás, naquele caso específico que estava em julgamento, de fato, como inclusive disseram vários desembargadores, estava extrapolando suas funções de polícia. Ela não tem a função investigativa. Esse vazamento ou essa extrapolação da função natural da polícia é que está em pauta. E o governador, quando bate no peito e diz “está sob meu comando”, está assumindo a responsabilidade de dizer que ele está permitindo que a polícia aja fora dos limites para o qual ela foi constituída. Existem outros órgãos que também fazem parte da organização do estado e que a eles cabe a investigação, não à polícia (militar) como ela estava agindo. Essa atitude é muito mais próxima de uma ditadura do que de um Estado Democrático de Direito. E defender que a polícia pode qualquer coisa é defender o descumprimento da lei e da própria Constituição. É errado.Se fosse para respeitar a liturgia do cargo, como governador do estado, mesmo sendo chefe da polícia, Caiado poderia pedir o impeachment de um membro de outro Poder?Tem muita coisa errada na proposta em si. O impeachment é um processo essencialmente político. Regulamentado pela Lei nº 1.079/1950 e que define os crimes de responsabilidade de agentes públicos. Não se depende de interpretação porque o texto da lei é muito simples e transparente em relação a quem pode e não pode responder a um processo de impeachment. Quem pode responder? O presidente da República, ministros de estado, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e o procurador-geral da República. São entes políticos. Apesar de os ministros do Supremo fazerem parte de uma estrutura do Judiciário, eles são nomeados pelo presidente da República em um ato político. Nem um outro membro do Judiciário chega ao cargo da mesma forma. O desembargador Camargo, por mais que o governador do estado tenha dito que não é uma pessoa digna ou que não tem formação para ocupar o cargo, o concurso público diz o contrário. O desembargador chegou lá por seus méritos, respeitando todas as leis do estado de Goiás para que fosse nomeado e ocupe o cargo, diferente de um ministro do Supremo ou do STJ que, por ser um ente político, pode responder por um possível impeachment. A proposta do governador de impeachment do desembargador é um absurdo jurídico sem tamanho. Não só pelo tom ameaçador, mas por ser juridicamente impossível. A lei não permite que isso aconteça.A proposta de afastar o desembargador, um fato inédito em Goiás, partiu do próprio presidente do TJ-GO, Carlos Alberto França. Ele convocou reunião no domingo (5), fora do período normal de funcionamento do tribunal, e já fez essa reunião na segunda (6) pela manhã, após feriado prolongado. Avalie este conjunto, por favor.É muito complicado. Eu não consigo compreender juridicamente a postura do Órgão Especial do TJ-GO. Não existe prática de nenhum crime, de nenhum ato de improbidade na expressão de uma opinião da maneira como aconteceu pelo desembargador Camargo. E desta maneira fica completamente sem sentido a proposta da presidência e seu afastamento, (sendo França) acompanhado por uma série de outros desembargadores. Me parece que o estado de Goiás está vivendo uma República paralela ao Estado Democrático de Direito, que não permite que pessoas tenham opiniões divergentes de seus comandantes. Que não permite que membros do Judiciário tenham opiniões conflitantes com a do governador. Está querendo se usar esse caso como exemplo para quê? Tem algo muito errado nisso porque juridicamente falando, a proposta de afastamento da maneira como aconteceu não tem o menor sentido. Está se criando uma nova lei no estado de Goiás que é contrária às leis do Estado Democrático de Direito e à própria Constituição. Então, eu não sei exatamente quais são os próximos passos ou as próximas ocorrências. Mas o que está acontecendo até agora me assusta, como defensor do Estado Democrático de Direito, da liberdade de expressão e do respeito às limitações impostas às ações da Polícia Militar, com respeito às limitações impostas pela lei a um devido processo legal, a que se não margeie a legislação a qualquer custo, justificando qualquer ato. Isso me assusta.Na sua opinião, o que representa para a imagem do Poder Judiciário todo esse processo ocorrido em Goiás?Vou tentar resumir com uma única palavra: medo. Vou lembrar um livro de um mestre da Universidade de São Paulo (USP), que foi ministro do STF, Eros Grau, “Por que tenho medo dos juízes”. Eros tem medo dos juízes e eu compactuo com a opinião do professor porque os juízes têm decidido conforme a própria consciência. E toda essa ocorrência, toda essa justificativa do afastamento, a pressão truculenta do governador para que o tribunal tome uma postura. Nitidamente o tribunal está se deixando influenciar pelo governador do estado e esquecendo o que diz a lei. Na minha opinião, o que está acontecendo no estado de Goiás, no Poder Judiciário goiano, me traz medo. Medo de que talvez de fato existam interferências externas do governador do estado. É um assunto que a gente também veio enfrentando em tempos modernos com relação ao antigo presidente da República, dizendo que todos estão a seu comando, que ele é o comandante supremo de tudo e de todos. Tenho medo que isso possa estar acontecendo em Goiás e que o governador esteja influenciando decisões livres e verdadeiras do Poder Judiciário, que deveria ser absolutamente independente.Em entrevista após a reunião do Órgão Especial, o presidente do TJ-GO disse que o objetivo do afastamento foi evitar questionamentos ao magistrado na sessão criminal em que ele trabalha. É como se estivessem protegendo o magistrado. Faz sentido?Sim. A partir do momento em que você pode ser questionado, como de fato aconteceu junto ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça), você preserva (com essa atitude) julgamentos muito bem embasados, acórdãos muito bem redigidos pelo desembargador Camargo e que - por conta das suas declarações e de toda a ocorrência que está em volta desse fato - outras decisões sejam questionadas. Por uma questão de estabilidade, sim, faz sentido. Eu não esperava que isso fosse necessário, tamanhas as ilegalidades e inconstitucionalidades que se pretendem impor ao desembargador meramente pela expressão da sua opinião.