Maria Khelma, Maria Ramos, Ana Mônica e Telma Regina. Quatro mulheres que há sete anos tiveram suas histórias marcadas por uma chacina ocorrida em Goiânia. O assassinato dos seus filhos por policiais militares motivou as mulheres a criarem o coletivo Mães Pela Paz. Inicialmente, o intuito era se organizar e pressionar as autoridades. Entretanto, o movimento se tornou um espaço de apoio mútuo que já reúne cerca de cem mães que perderam filhos e filhas nas mesmas condições em Goiás. Em comum, a indignação pelas vidas ceifadas.
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A chacina do Residencial Solar Bougainville, em Goiânia, ocorreu no final de abril de 2018. Quatro policiais militares entraram em um casa e mataram Matheus Henrique de Barros Melo, de 19 anos, que morava na casa invadida, o atendente de restaurante Marley Ferreira Nunes, de 17, e o assistente de mecânico Divino Gustavo de Oliveira, de 19. O estudante João Vitor Mateus de Oliveira, de 14 anos, que estava na casa, foi dado como desaparecido.
Os policiais afirmam que foram até a casa de Matheus para supostamente apurar uma denúncia anônima de que alguém havia deixado lá um veículo roubado. Segundo a versão deles, os três mortos reagiram à entrada da equipe no imóvel com disparos, forçando-os a reagir. Os policiais negam que João Vitor estava no local. A versão é refutada pelo Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO), que denunciou os policiais pela morte dos quatro jovens, mesmo o corpo de João Vitor nunca tendo sido encontrado. De acordo com familiares, quando a polícia entrou no imóvel, os garotos jogavam videogame.
No início de 2018, Maria Ramos, de 69 anos, havia acabado de se aposentar e tinha como meta o descanso. Seus planos foram drasticamente alterados quando recebeu uma ligação contando que o neto, Matheus, havia sido morto dentro de casa por policiais. Maria nunca mais voltou a pisar na casa em que morava com o neto. Hoje, vive na zona rural de Aragoiânia, cidade na região metropolitana da capital. A tragédia também alterou dramaticamente a vida das mães dos outros jovens. Mudanças de casas e a necessidade de acompanhamento psicológico foram necessárias.
As quatro mulheres já se conheciam antes da tragédia. Moravam próximas e os filhos eram amigos. Segundo elas, eles se viam praticamente todos os dias para conversar, jogar vídeo game e empinar pipas. Duas delas, Maria Khelma e Telma Regina, são irmãs e compartilham uma dor multiplicada: o enterro de Divino Gustavo e o desaparecimento de João Vitor.
Depois do ocorrido, as mulheres se aproximaram. Após dias imersas no que classificam como um luto paralisante, começaram a se reunir, semanalmente, para falar sobre o desaparecimento de João Vitor. Sem esperanças de encontrá-lo vivo, entraram em diversas matas em busca do corpo do adolescente. Em paralelo, começaram a buscar formas de pressionar autoridades policiais para que as mortes e o desaparecimento fossem investigados e solucionados.
Nas reuniões semanais para traçar os caminhos para alcançar a justiça, acabam falando sobre os filhos com amor, saudade e tristeza. Aos poucos, o luto foi sendo trabalhado. Em 2019, Maria Ramos, que é escritora, publicou um livro sobre o episódio intitulado 'Por Que Não Me Sinto Segura Dentro da Minha Própria Casa? Chacina Solar Bougainville'. "Se eu não escrevesse, iria enlouquecer", lembra.
Com pouco conhecimento sobre trâmites legais, mas munidas de coragem, as mulheres procuraram o auxílio de políticos e instituições de defesa dos direitos humanos. Chegaram ao Comitê Goiano de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno, onde surgiu a ideia da criação do coletivo. O nome foi escolhido cuidadosamente. "Queríamos algo que sugerisse enfrentamento, mas também falasse de paz", destaca Maria Ramos, que hoje é presidente do coletivo.
Em meio às diversas idas às salas de delegados, defensores públicos e promotores de justiça, outras mulheres foram chegando ao coletivo e engrossando a luta por justiça. Atualmente, o movimento possui membros de diversas cidades do estado, mas a maior parte se concentra em Aparecida de Goiânia e cidades do Entorno do Distrito Federal. A maioria dessas mães são negras, pobres e moradoras da periferia. "Não tem família rica aqui", frisa Maria Ramos.
Por meio de parcerias com a Universidade Federal de Goiás (UFG) e outras iniciativas, como a Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap), as mulheres que fazem parte do coletivo possuem assistência psicológica de 15 em 15 dias, além de receberem orientações jurídicas. Maria Khelma, Maria Ramos, Ana Mônica e Telma Regina já falaram sobre o trabalho que desempenham em universidades e escolas, chamando a atenção para os riscos da escalada da violência policial. No momento, se organizam para abrir um CNPJ para o coletivo.
Elas contam que as feridas abertas pelo episódio de violência ainda não se cicatrizaram. Mesmo assim, orientam como podem as mães que chegam até elas com o mesmo olhar desesperado que tinham em 2018. Mesmo com o encaminhamento na Justiça do caso da chacina do Solar Solar Bougainville (leia mais ao lado), o plano das mulheres é manter o Mães Pela Paz vivo, mas futuramente sob a liderança de outras mães, protagonistas de outras tragédias ocorridas em Goiás. "Tem mães que passam por isso e ficam acamadas. É muita dor. Por isso, também precisam existir aquelas que vão para a luta", finaliza Maria Ramos.
Audiência ocorre nesta segunda
A primeira audiência de instrução e julgamento, ocasião em que os envolvidos no processo são ouvidos, da chacina do Residencial Solar Bougainville, em Goiânia, ocorrerá nesta segunda-feira (7). No início de dezembro de 2024, quase sete anos após o ocorrido, o Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO) denunciou quatro policiais militares pelas mortes: o segundo tenente Fabrício Francisco da Costa, de 42 anos, o terceiro sargento Thiago Antonio de Almeida, de 37, o cabo Eder de Sousa Bernardes, de 40, e o soldado Cledson Valadares Silva Barbosa, de 33. Eles integravam o Batalhão de Choque da Polícia Militar do Estado de Goiás (PM-GO).
Até a denúncia, um dos quatro jovens envolvidos no episódio era tratado como desaparecido: o estudante João Vitor Mateus de Oliveira, de 14 anos. Entretanto, o MP-GO chegou a conclusão que ele também foi morto pela polícia. As investigações apontam que após matarem Matheus Henrique de Barros Melo, de 19 anos, que morava na casa invadida, o atendente de restaurante Marley Ferreira Nunes, de 17, e o assistente de mecânico Divino Gustavo de Oliveira, de 19, os policiais levaram João Vitor até uma mata no Setor Forteville, a cerca de quatro quilômetros do local da abordagem. O adolescente teria sido morto com três tiros e seu corpo nunca foi encontrado. No matagal onde o MP-GO acredita que ele foi executado foram encontrados os chinelos que ele usava no dia, a carcaça do celular dele e três cápsulas de arma de fogo.
Contrariando a versão dada pelos policiais, o MP-GO destaca o fato de que os peritos não encontraram indícios de que houve a troca de tiros. Para os promotores do caso, a informação sobre as armas é mentirosa e foi dada para encobrir as execuções. De acordo com a denúncia, João Vitor foi morto para que não testemunhasse junto à Polícia Civil do Estado de Goiás (PC-GO) e na Justiça sobre a forma como os amigos foram mortos. Ele teria sido levado para a mata em outro bairro porque os policiais não conseguiram matá-lo na própria residência de modo que pudessem depois sugerir que ele disparou primeiro.
A denúncia foi possível após abertura de procedimento investigatório criminal (PIC) em novembro de 2023 pelo Grupo de Atuação Especial no Controle Externo da Atividade Policial e na Segurança Pública (Gaesp) do MP-GO após reclamação de familiares e de autoridades políticas quanto a falta de respostas por parte da PC-GO.
"Tem 7 anos que não sei o que é dormir"
Mãe de João Vitor Mateus de Oliveira, desaparecido aos 14 anos, após ação policial em 2018, e de outros quatro filhos, Maria Khelma de Oliveira relata os últimos momentos com o adolescente e a vida após a tragédia.
Como o João Vitor era?
Sempre foi um menino tranquilo e brincalhão. Colocar apelido nos outros era com ele mesmo. Era um menino muito vaidoso. Acorda 5 horas para sair às 7 horas de casa (para a escola). Era muito inteligente. Sabe qual era o sonho dele? Se formar engenharia robótica para fazer robôs que ajudassem a polícia. Essa parte me dói muito.
Como foram os últimos momentos antes de João Vitor sumir há sete anos?
Ele veio do serviço (em uma fábrica de sofá). Sentamos fora de casa. Sentei no chão. Ele veio e colocou a cabeça nas minhas pernas. Ficou deitado. Fiquei mexendo na cabeça dele. Ele era muito apegado comigo. Me chamava de 'minha torradinha de bauru'. Depois, ele levantou, tomou banho e falou: 'Mãe, vou lá no Matheus, mas volto agorinha'. Na hora, me deu uma coisa ruim. Um aperto por dentro. Olhei para e falei: 'Meu filho, você podia não ir'. Ele disse que só ia jogar uma partida e já voltava. Ele saiu e eu fiquei olhando para ele. Aquele aperto no peito. Ele foi e voltou (para trocar de roupa). Ele me abraçou bem forte e falou assim para mim: 'Mãe, eu te amo. Te amo muito'. Eu falei: 'Eu também te amo meu filho. Vai com Deus'. Então, ele falou: 'Agorinha eu volto'. Nunca mais.
Depois da chacina, você e sua família se mudaram diversas vezes, inclusive de cidade. Por quê?
A polícia passava e ameaçava. Só no Jardim Ana Lúcia (bairro de Goiânia) me mudei de três casas em menos de dois meses. Eles iam na porta, paravam, buzinavam, colocavam as armas para fora. Depois, eu falei: nós não vamos mais ficar nos mudando. Não somos nós que devemos algo para eles.
Depois de tudo, como ficou sua relação com as forças policiais?
Costumo falar que a polícia, para mim, é como uma caixa de tomate. Tem uns sadios e uns podres no meio. Você tem que separar os podres dos sadios para não contaminar. Não falo que a polícia em geral não presta. Costumo falar que, se não tivesse a polícia, a população sofreria muito. Eu só não concordo com a maneira que eles agem. Chegam e matam sem saber o que está acontecendo.
Nesta segunda-feira (7), ocorrerá a primeira audiência de instrução e julgamento do caso. Qual a sua expectativa para esta fase?
Não sei como estou me sentindo. Há pouco tempo disse para o meu patrão que não estava aguentando. Muito nervosa. Eu tento me acalmar e não consigo. Vou reviver tudo de novo (chora).Tem praticamente sete anos que não sei o que é dormir a partir das 2 horas da madrugada. A hora que eu acordo, a primeira coisa que eu lembro é dele.
O que vem no coração?
A dor, né? Sabe o que é você levantar, durante uns cinco anos da sua vida, sua casa estar toda limpa e você lavar vasilha, lavar roupa e jogar água na casa para ver se não enlouquece? De você chorar e onde você chorar, cair. Se alguém não for lá, você não levanta. Eu passei por isso (...) O que é importante para mim, e creio que para outras mães, é limpar o nome deles. Colocaram eles como bandidos.
A vida ainda tem brilho depois de perder um filho?
Tem. Porque tenho meus outros filhos e meus netinhos. Eu já tinha uma neta e um ano e pouco depois (da morte de João Vitor) minha filha (mais velha) engravidou. Foi quando eu realmente voltei a querer viver. Falo que o Bernardo foi minha luz. Se você ver, ele é muito parecido com o João Vitor.