A Companhia de Urbanização de Goiânia (Comurg) contratou por R$ 1,44 milhão e sem licitação o escritório Tadeu Abreu & Marllus Vale Advogados para prestação de serviços jurídicos diversos. A contratada vai dar suporte ao departamento jurídico da companhia emprocessos judiciais e administrativos com foco em ações de maior demanda. O contrato prevê a obrigação do escritório em manter de forma integral um advogado nas dependências da Comurg e a atuação em no máximo 400 processos por mês, por um ano.
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A contratação -- divulgada em primeira mão pela CBN Goiânia -- foi por inexigibilidade de licitação, o que exige critérios rigorosos de inviabilidade de competição. Nesse caso, a contratação direta de um escritório deve ser justificadamente amparada em notória especialização. No termo de referência -- documento em que o contratante esclarece o objeto a ser contratado e os elementos que justifiquem a contratação --, o diretor jurídico da companhia, Luciano de Paula Cardoso Queiroz, explica que um dos motivos para a escolha é a total "confiança" entre a Comurg e o escritório.
"A contratação de serviços técnicos advocatícios exige, como um dos principais critérios, a relação de confiança entre a empresa contratante e a banca, dada a singularidade e a natureza sensível dessas atividades. No presente caso, essa confiança está plenamente estabelecida, sendo um aspecto incontestável na escolha do escritório e seus profissionais. Os advogados do escritório são amplamente reconhecidos e respeitados em todo o Estado de Goiás, possuindo vasta experiência, reputação ilibada e um histórico relevante de atuação jurídica e administrativa", escreveu.
Luciano diz haver uma espécie de complô entre "grandes escritórios de renomados advogados em Goiás" e pequenos escritórios "a fim de explorarem o 'nicho' Comurg" de olho no crescente valor das condenações judiciais. A situação, somado ao tamanho da companhia e ao crescente número de ações trabalhistas , tornaria inviável uma "licitação de ampla concorrência". "Aliar todos esses requisitos no momento de se escolher um escritório jurídico e ainda sem se esquecer da lealdade que se busca, torna-se tarefa árdua, pois os conflitos de interesses podem macular as atuações."
Outro ponto destacado pelo diretor jurídico é uma suposta isenção envolvendo o fato de a banca de advogados nunca ter atuado contra a Comurg ou a favor de sindicatos de empregados, além de ter experiência em negociações coletivas representando a esfera patronal, o que, segundo Luciano, seria o caso da Tadeu Abreu & Marllus Vale. Em seu site, o escritório diz que atua há 25 anos e destaca serviços nos segmentos sucroenergético, de revenda de veículos, administração de shopping, construção civil, pavimentação de rodovias, pecuária e agricultura.
Em nota ao jornal, a Comurg afirma que foi feito um processo de seleção e que o escritório contratado foi o terceiro convidado, após outros dois declinarem da proposta. "A contratação seguiu requisitos legais e éticos." A companhia se recusa a repassar a íntegra da documentação envolvendo o processo de contratação, alegando limitações impostas pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). A LGPD entrou em vigor em 2020 e trata de diretrizes sobre a coleta, processamento e armazenamento de dados pessoais, visando a proteção da privacidade de cidadãos.
Pouca gente
A Comurg também afirma na nota enviada ao POPULAR que levou em consideração a quantidade de ações em comparação ao atual corpo jurídico da companhia, de apenas quatro advogados efetivos, "um deles afastado". E que o valor do contrato "de R$ 120 mil ao mês" é "abaixo dos valores praticados pelo mercado", visto que o valor médio de cada ação, caso seja atingido o limite de 400 por mês, será de R$ 300 cada. O estudo técnico preliminar (ETP), contendo o levantamento de custos e valores médios praticados no mercado, não foi tornado público.
No termo de referência, o diretor jurídico da companhia afirma haver aproximadamente 3 mil processos trabalhistas em andamento , além de outros 300 na área cível, e que por ano são iniciados mais 500 novas ações trabalhistas e 50 cíveis. "Dentre tais processos, há necessidade de atuação estratégica, seja por conta dos pedidos que podem gerar jurisprudências desfavoráveis à companhia e acumular passivos trabalhistas e incentivo a novas demandas, ou mesmo em razão dos valores atribuídos às ações", afirmou.
A contratação do escritório equivale a 64,5% do total economizado com o enxugamento de comissionados no departamento jurídico da companhia. No termo de referência, Luciano afirma que o corte foi de R$ 186 mil por mês, com a saída de 14 dos 36 advogados comissionados que estavam na folha de pagamento até dezembro de 2024. O documento no qual a Comurg justifica a contratação em nenhum momento afirma se os outros 22 advogados comissionados estão atuantes, preferindo frisar haver os três concursos, "nenhum especialista em defesas estratégicas".
Luciano destaca aspectos negativos do departamento que chefia, dizendo que sua equipe não tem experiência em "atuações estratégicas e técnicas" e não consegue, "haja vista o volume de trabalho diário", dedicar-se a "teses mais robustas e com maior probabilidade de resultados positivos". O diretor soma os 3,3 mil processos atuais com os 550 novos previstos e arredonda tudo para uma "média anual" de 5 mil. A ação do escritório seria "limitada a ações de maior impacto, sensíveis, complexas e que demandam profunda experiência, expertise e estudos aprofundados".
O contrato foi assinado em 25 de março de 2025 pelo presidente da Comurg, Cleber Santos, e o diretor administrativo-financeiro da companhia, André Henrique Avelar de Sousa. A contratação fala no foco em casos de alta complexidade e relevância, como ações coletivas, conflitos, termos de ajustamento de condutas (TACs), autos de infração e negociações com sindicatos. Os serviços abrangem o suporte preventivo e consultivo à assessoria jurídica, com envolvimento direto em processos, mesmo quando o valor da causa não atinge o piso de R$ 500 mil.
Processos
O diretor jurídico aponta no termo de referência a existência de acordos trabalhistas extrajudiciais que teriam gerado despesas superiores a R$ 30 milhões "apuradas até agora" que precisam ser anuladas para que os valores sejam ressarcidos aos cofres da companhia. No começo do ano, O POPULAR e a TV Anhanguera revelaram a existência destas ações que levantaram suspeitas da atuação dos advogados que atuavam na companhia na gestão passada. Na época, a nova diretoria não chegou a divulgar o valor destas ações, mas o jornal conseguiu identificar mais de 60.
Na mesma justificativa, Luciano diz haver um grande volume de ações trabalhistas que tratam de "registros de desvios de função, incorporações indevidas de gratificações, desvios de finalidade em pagamentos de quinquênios, falhas administrativas na gestão de pessoal, de RH, de folha e de rotinas trabalhistas adequadas", resultando em passivos trabalhistas que ultrapassam R$ 100 milhões. Estas informações estariam melhor detalhadas em anexos ao termo de referência que a companhia não torna público.
Ainda no termo de referência, é dito que as cláusulas dos acordos coletivos assinados pelas antigas diretorias com o sindicato dos empregados "favorecem supersalários e concessões de benefícios fora do padrão legal" e que são questionadas por órgãos fiscalizadores por, supostamente, estarem em desacordo com a legislação trabalhista vigente, e que foram criadas em anos anteriores "obrigações à municipalidade sem a sua participação e sem a sua anuência, mas com a anuência do jurídico interno da companhia". Os dados que detalham essas afirmações também não são públicos.
Em um trecho do termo de referência, o diretor jurídico fala na "falta de isenção do jurídico interno", mas não explica se está se referindo a gestões passadas ou se o problema ainda persiste. "Conflitos de interesse surgem devido à proximidade do departamento jurídico com os agentes envolvidos nas irregularidades, comprometendo a transparência e a lisura na condução de processos", escreveu. "A atuação em demandas trabalhistas e a solidificação de teses favoráveis aos funcionários pode em determinadas circunstâncias demonstrar sérios conflitos de interesses."
A Comurg foi questionada sobre se algum membro do escritório já trabalhou para alguém da diretoria da Comurg e qual a experiência do escritório com serviços para órgãos e empresas públicos, porém não houve respostas. O POPULAR não conseguiu contato com Tadeu e Marllus nesta segunda-feira (14). A CBN Goiânia também tentou, pela manhã, e foi informada que naquele momento não era possível atender.