Goiás interrompe repasses às comunidades terapêuticas
Últimos contratos foram encerrados em janeiro deste ano. Especialistas apontam que o momento deve ser de fortalecer investimento na Rede de Atenção Psicossocial (Raps)
Mariana Carneiro

Caps AD III Criarte Vida, na Avenida Major Manoel Augusto Silva Brandão, no Setor Parque Veiga Jardim, em Aparecida de Goiânia: unidade funciona porta aberta, ou seja, atende a demanda espontânea (Diomício Gomes / O Popular)
As comunidades terapêuticas, polêmicas por uma série de denúncias envolvendo maus tratos e cárcere privado, deixaram de ser financiadas pela Secretaria de Estado de Saúde de Goiás (SES-GO). Os últimos três contratos foram encerrados em janeiro deste ano. Entre 2019 e 2023, a SES-GO repassou R$ 6,5 milhões para instituições do tipo. Especialistas consideram os serviços das comunidades inadequados e reforçam que o momento é de fortalecimento dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial (Raps). Segundo a SES-GO, os investimentos financeiros na rede aumentaram.
Esta é a primeira de uma série de quatro reportagens preparadas pelo POPULAR para o mês da luta antimanicomial, celebrado em maio. Ao longo dos últimos anos, as comunidades terapêuticas em Goiás protagonizaram diversas notícias. No início de agosto do ano passado, a Polícia Civil do Estado de Goiás (PC-GO) desarticulou o funcionamento de uma comunidade terapêutica em Abadia de Goiás. O local abrigava 38 homens, que eram mantidos em cárcere privado.
No final do mesmo mês, duas outras unidades, com quase 100 internos ao todo, foram desarticuladas em Anápolis. Nos locais, pacientes eram vítimas de maus tratos. Ainda no ano passado, o estado registrou mais de um caso envolvendo sequestro e internação forçada em comunidades terapêuticas, sendo que pelo menos um caso resultou na morte do paciente.
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A gerente de Saúde Mental da SES-GO, Nathália dos Santos Silva, reforça que nenhuma das comunidades terapêuticas que tinham contratos com a pasta apresentaram episódios de maus-tratos, tortura, sequestro ou cárcere privado. Ela destaca que a decisão de interromper o financiamento das comunidades está alinhada com o posicionamento de conselhos e entidades de classe. "Se queremos aumentar recursos para a Raps, precisamos fazer esse redirecionamento. Recurso público é escasso", pondera.
O tratamento de dependentes ou usuários de drogas é regrado pela Lei nº 11.343, de 2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad). Apesar de a Portaria nº 3.088/2011, do Ministério da Saúde, regrar o funcionamento das comunidades terapêuticas, atualmente, elas são de responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), o que especialistas consideram que gera um limbo de políticas públicas.
Para se ter ideia, no final de abril deste ano, o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) publicou uma resolução que dispõe sobre o não reconhecimento das comunidades terapêuticas como entidades e organizações de assistência social e sua não vinculação ao Sistema Único de Assistência Social (Suas). Dias depois, o MDS divulgou nota de esclarecimento detalhando que os financiamentos às comunidades terapêuticas feitos pelo órgão não são via Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS) e, por isso, o conteúdo da resolução em questão não afeta termos de colaboração, convênios e contratos.
O psicólogo e presidente da Comissão de Saúde do Conselho Regional de Psicologia de Goiás (CRP-GO), Marco Aurélio Lima, considera que as dinâmicas assistenciais das comunidades terapêuticas ferem o código de ética da classe profissional. O profissional participou de uma série de ações fiscalizatórias ocorridas em unidades do tipo nos últimos anos e conta que não foram encontradas gestões compostas por profissionais técnicos, como acontece em outros aparelhos da Raps. "Além disso, verificamos quadros de violência física e psicológica", frisa.
As comunidades terapêuticas se organizam em residências coletivas temporárias, pautadas pelo isolamento e pela abstinência. Lima aponta que isso se mostra pouco eficiente na prática. "Quando a pessoa sai (da comunidade), logo recai. São locais que não trabalham com a política nacional de redução de danos. É preciso pensar nisso, pois nem todas as pessoas vão abandonar completamente o uso de drogas", avalia.
O fim do repasse por parte do governo estadual não impede que os municípios, assim como a União, continuem firmando convênios com comunidades terapêuticas. Ainda no âmbito do governo estadual, vale destacar que 47 comunidades terapêuticas continuam habilitadas para receber os auxílios nutricional, água e energia, com custo mensal de R$ 179,8 mil aos cofres públicos. De acordo com a Secretaria de Desenvolvimento Social de Goiás (Seds), a pasta acompanha e fiscaliza o uso dos recursos, com visitas técnicas de vistoria.
Especialistas, profissionais que atuam na rede e usuários dos serviços ouvidos pela reportagem foram unânimes em concordar que o avanço das comunidades terapêuticas acontece em meio a um vazio assistencial de outros aparelhos da Raps, principalmente os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas III (Caps AD III) e as Unidades de Acolhimento (UAs), que têm perfis de acolhimento mais semelhantes aos das comunidades (confira quadro).
Conforme a portaria que instituiu a Raps no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), essas unidades podem ser abertas em municípios ou regiões com população acima de 200 mil habitantes. Goiás conta com seis municípios com população superior ao exigido. Cinco deles contam com Caps AD III, sendo que Aparecida de Goiânia ainda possui uma unidade infanto-juvenil. Quando o assunto são as UAs, a situação de Goiás é mais crítica: o estado não conta com nenhuma unidade do tipo para adultos. A UA seria justamente a responsável por acolher pessoas vulneráveis e que demandam acompanhamento terapêutico e protetivo de caráter transitório, com tempo de permanência de até seis meses.
O Ministério da Saúde estabelece R$ 150 mil como incentivo financeiro de custeio para implantação de um CAPS AD III novo. A portaria que define o valor é de 2012. Em dezembro de 2023, o governo federal dobrou o investimento para custear as UAs. Com os novos valores, o custeio mensal para a assistência a adultos passou de R$ 25 mil para R$ 50 mil. Em março deste ano, foi aprovada uma resolução da Comissão Intergestores Bipartite (CIB) para que o cofinanciamento da Raps pelo governo estadual aumentasse de 25% para 30% do valor enviado pelo Ministério da Saúde.
Entretanto, o presidente da Comissão de Saúde do CRP-GO ainda chama atenção para o fato de que um único aparelho, o Complexo de Referência Estadual em Saúde Mental (Cresm), antigo Centro Estadual de Referência e Excelência em Dependência Química (Credeq), ainda recebe mais recursos que todo o restante da Raps (confira quadro). "A Raps funciona quando inserida dentro de um território, de maneira articulada. Como vamos falar de atendimento na perspectiva de protagonismo do usuário quando os valores repassados para a Raps ainda são menores?", provoca Lima. Nesse sentido, a gerente de Saúde Mental da SES-GO reconhece as fragilidades da rede, mas afirma que a previsão é de que, em 2026, o repasse para a Raps seja maior do que para o Cresm. "Estamos trabalhando para corrigir distorções", finaliza Nathália.
Caps AD III é modelo em tratamento
Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) foram criados com a proposta de substituir os ambientes manicomiais. Nesse sentido, os Caps Álcool e Drogas III (Caps AD III) funcionam 24 horas e contam com acolhimento noturno. No Caps AD III Criarte Vida, uma das referências em Goiás, são 12 leitos e cada paciente pode permanecer na unidade por até 14 dias. "Para desintoxicação. Depois, ele vai seguir com tratamento na modalidade diurna, com atividades terapêuticas", detalha Eurides Santos Pinho, coordenadora de Saúde Mental de Aparecida de Goiânia, onde fica a unidade.
A equipe do Caps AD III Criarte Vida é multiprofissional, sendo composta por médicos (clínico e psiquiatra), enfermeiros, técnicos em enfermagem, farmacêuticos, fisioterapeutas, professores de educação física e assistentes sociais. "Somos uma unidade porta aberta. Basta chegar. É feito um acolhimento inicial, onde é definido o projeto terapêutico singular, já que cada paciente vai precisar de um tratamento diferente. Aqui não existem grades e ninguém fica amarrado ou preso. Se o usuário decidir abandonar o tratamento, ele pode sair quando quiser", esclarece Eurides.
A coordenadora aponta que o local recebe muitos pacientes que já estiveram em comunidades terapêuticas e carregam traumas. "Além da abstinência total e do isolamento, que podem ser problemas, tem a laborterapia. Quando o corpo está em processo de desintoxicação, a pessoa sente fraqueza e pode desenvolver até neuropatias. Na prática, ela não vai ter forças para trabalhar", diz. Segundo Eurides, o intuito dos Caps AD III é promover um tratamento vinculado às relações cotidianas dos pacientes. "Eles precisam estar fortalecidos para transitarem nos ambientes que convivem e que o acesso a droga é facilitado", pondera.
Usuária do Caps Ad III Ipê, em Goiânia, e presidente da Associação de Usuários dos Serviços de Saúde Mental (AUSSM) da capital, Vanete Resende é uma crítica das comunidades terapêuticas e defensora dos Caps. "Sou uma das sobreviventes da situação de rua porque procurei o Caps para me tratar. Além de receberem dinheiro do poder público, elas pedem para as famílias. Luto pelos grupos terapêuticos, que hoje estão dentro dos Caps, que salvam vidas e socializam as pessoas", comenta.
Convênios são essenciais, diz Febract
A Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (Febract) considera os convênios do poder público com as comunidades terapêuticas essenciais para o bom funcionamento desses locais. "É de suma importância. As famílias são descapitalizadas quando o familiar se envolve no uso de risco de substâncias psicoativas", afirma Norma Silva, coordenadora da Febract em Goiás. Como instituições do terceiro setor, as comunidades terapêuticas podem ser mantidas por iniciativas privadas e por parcerias com o governo.
Norma define as comunidades terapêuticas como equipamentos da rede suplementar e destaca que essas instituições prestam serviços de acolhimento residencial transitório, com adesão e permanência exclusivamente voluntárias. Ela também aponta que elas possuem equipes multidisciplinares, responsáveis pelo desenvolvimento de um Plano Individual de Atendimento (PIA) para os acolhidos e por avaliações rotineiras.
Em relação aos episódios de violência e violações dentro das comunidades terapêuticas, Norma acredita que eles refletem a falta de fiscalização, que é competência do poder público. "E também a falta de clareza entre o que é o serviço comunidade terapêutica e a clínica especializada. Todas as atividades desenvolvidas nas comunidades terapêuticas devem ser baseadas no respeito à dignidade da pessoa humana", frisa.
Muitas das comunidades terapêuticas têm forte caráter religioso, o que é alvo de críticas, mas que Norma considera como positivo. "Existem evidências consistentes do papel da espiritualidade no tratamento e recuperação das pessoas com problemas por uso de substâncias", diz. Ela dá como exemplo programas de 12 passos, como o Alcoólicos Anônimos (AA).
Em relação ao isolamento, Norma explica que a crítica se dá pelo fato de a maioria das comunidades estarem situadas em zonas rurais, mas enfatiza que sempre devem existir mecanismos para garantir o transporte e acesso dos acolhidos à rede de saúde e de proteção social. "É muito importante garantir recursos que facilitem o processo gradativo de reinserção sociofamiliar, através das saídas terapêuticas", conta. Sobre a prática da abstinência, ela relata que ela é amparada pela lei que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad).

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