O trágico episódio ocorrido na noite de sábado (18) no interior da unidade de terapia intensiva do Hospital Municipal de Morrinhos, a 130 quilômetros de Goiânia, continua repercutindo muito. A ação policial que vitimou um paciente em surto após ele render uma técnica de enfermagem com um caco de vidro levantou dúvidas sobre a necessidade de uma arma letal no gerenciamento da crise. Luiz Cláudio Dias, de 59 anos, foi atingido por disparos efetuados por um policial militar e não resistiu aos ferimentos. Cinthia da Silva Nascimento não ficou ferida.
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A família de Luiz Cláudio Dias está indignada com o desfecho do episódio e vai acionar judicialmente tanto a unidade de saúde quanto o Estado por não terem preservado a vida do paciente com histórico de doenças crônicas. Ele estava internado havia três dias na UTI depois de ter passado pela regulação do Sistema Único de Saúde (SUS) em Piracanjuba, onde recebeu o primeiro atendimento. Para o filho, o enfermeiro e cirurgião dentista Luiz Henrique Dias, o pai, que era diabético tipo 1, teve um surto de hipoglicemia. Quando a concentração de açúcar no sangue não é regulada, a pessoa pode perder a consciência. "Era um Luiz inconsciente, pela debilidade de sua doença."
Luiz Henrique, enfermeiro há 14 anos e recém-formado em Odontologia, já atuou em grandes hospitais de Goiânia e ainda hoje trabalha na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Flamboyant, em Aparecida de Goiânia. Foi lá que, em seu plantão no dia 16 de junho do ano passado, Samuel Martins, 23 anos, foi atendido após uma festa de música eletrônica nas proximidades. Em surto, falando frases desconexas e andando entre carros, o jovem foi contido por uma equipe da Polícia Militar. Quando ele chegou à unidade, estava muito machucado. O corpo de Samuel Martins foi localizado pela família no IML de Goiânia.
"Sempre consegui reverter aquele tipo de quadro que meu pai apresentou e nunca chamei a polícia. O que fizeram foi uma atrocidade. Meu pai não era um bandido. Já vi coisas horrendas acontecer em UTI, de precisar de cinco profissionais para conter um paciente, mas ali foi uma falta de competência que começou com a equipe de saúde até o fim do processo todo. Há muitas questões que precisam ser respondidas: onde estava a equipe da UTI que não viu meu pai andar, quebrar uma janela e render a técnica de enfermagem? Por que não usaram um aparelho de choque? Por que pisaram nele depois do tiro? Meu pai era um homem debilitado, puxava a perna e tinha deficiência visual."

Um paciente internado em uma unidade de terapia intensiva (UTI) do Hospital Municipal de Morrinhos, no sul de Goiás, foi morto por um policial militar após fazer uma enfermeira refém e a ameaçar durante um surto psicótico, segundo a Polícia Militar (PM). (Reprodução)
O tratorista aposentado Luiz Cláudio Dias era o mais antigo paciente renal crônico de Goiás. Há 24 anos fazia hemodiálise três vezes por semana na Clínica Santa Mônica. Viúvo havia cerca de um ano e meio, deixou um casal de filhos, Luiz Henrique e Gabriela, 28. "Ele era o meu herói, meu parceiro que todo dia perguntava 'e aí casca de bala?'", lembra, chorando, Luiz Henrique. Nesta segunda-feira (20), os filhos já se reuniram com um advogado para tomar as primeiras providências. "Eu quero justiça e vou até o fim. Esse agora é o meu objetivo de vida. Meu pai não é isso que estão colocando nas redes sociais", afirmou o enfermeiro.
Em nota, a Polícia Militar do Estado de Goiás informou que "o primeiro interventor da equipe policial presente no local atuou conforme os protocolos previstos no Procedimento Operacional Padrão (POP), tentando negociar com o causador do evento crítico (CEC) para preservar a vida da vítima e conduzir a situação de forma pacífica". O POP da PM goiana foi criado em 2004 e está disponível na internet. A corporação explicou que foi instaurado um inquérito policial militar (IPM) para apurar as circunstâncias da ocorrência em Morrinhos. Delegado da Polícia Civil, Fabiano Henrique Jacomelis, também investigará o fato e já começou a ouvir os envolvidos.
Especialistas apontam falhas na ação
Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisa Sobre Criminalidade e Violência (Necrivi), da Universidade Federal de Goiás (UFG), o professor e sociólogo Dijaci David de Oliveira, da Faculdade de Ciências Sociais (FCS), acredita que a polícia goiana não está preparada para fazer esse tipo de atendimento. "Toda vez que isso acontecer teremos uma situação de insegurança, porque a polícia não está treinada e não possui recursos para agir de forma adequada e coloca em risco a vida de outras pessoas. A gente pode ter dezenas de outros surtos, já que as pessoas entram em surto por inúmeras razões", lembra. "A pessoa que está em um surto não é criminosa, precisa de ajuda."
Coronel da reserva da PM de São Paulo, doutor em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública, Márcio Santiago Higashi Couto disse ao POPULAR que não é possível fazer negociação com pessoas que estão em surto. "Um indivíduo em surto não tem raciocínio para uma conversa. Ele não entende a negociação e corre o risco de ficar ainda mais perturbado. Nesse episódio houve uma pressão sobre o soldado, que precisa ter controle emocional, mas o procedimento foi correto. Ele agiu rapidamente para evitar que o paciente matasse a enfermeira", comentou o oficial que por 11 anos serviu no 1º Batalhão de Polícia de Choque Tobias de Aguiar (Rota).
Para o coronel Márcio Santiago, uma arma não letal, como uma arma taser ou com tiro de borracha, poderia ter sido utilizada, mas ainda assim haveria risco de o paciente em surto ter forças para matar a técnica de enfermagem. "Entre preservar a vida dela e dele, optou-se pela dela. Se fosse usar arma não letal, haveria uma possibilidade de os dois saírem com vida, mas é uma possibilidade, porque a arma poderia não fazer efeito. Sei que há uma grande discussão em torno do tema, mas não dá para negociar com indivíduo em surto. Isso é técnica."
Tanto o pesquisador do Necrivi quanto o coronel Márcio Santiago acreditam que, no caso de Morrinhos, houve um erro crucial. O local onde tudo aconteceu, a UTI da unidade de saúde, estava cheia de gente. "Pessoas especializadas em negociação lembram que uma das primeiras coisas é limpar o ambiente para não atrapalhar. Aquele monte de gente está pronto para tornar a coisa muito mais dramática", afirma Dijaci Oliveira. O oficial paulista concorda. "O local tem de ser totalmente isolado para não ter mais pessoas em risco." Além dos profissionais de saúde e servidores, estavam na UTI nove pacientes. "Uma bala poderia ter ricocheteado e atingido outras pessoas," diz o sociólogo.
O doutor em Sociologia da UFG questiona: "Seja qual for o chamado, todos serão tratados como bandidos? O que a gente espera é que a polícia seja capaz de produzir um protocolo para várias situações, como os casos que envolvem cidadãos em surto."
PM quer a compra de 1,2 mil armas taser
Comandante-geral da Polícia Militar do Estado de Goiás, o coronel Marcelo Granja disse ao POPULAR que a equipe policial que chegou à unidade de saúde foi a de primeira intervenção. "A crise avançou muito rápido", afirmou, sobre a atitude tomada pelo policial de atirar no paciente. Naquele momento, já estava a caminho da unidade de saúde uma segunda equipe, munida do dispositivo eletrônico de controle (DEC), ou taser, arma de choque utilizada para neutralizar agressores.
Atualmente, conforme o comandante-geral da PM, existem cerca de 400 tasers distribuídos por todas as unidades, mas esse quadro deve mudar em março. "Ainda neste primeiro semestre todas as viaturas terão um dispositivo. Queremos adquirir entre 1 mil e 1,2 mil unidades, mas tudo vai depender do valor do dólar."