Mais de 20 anos depois da reforma psiquiátrica, Goiás ainda conta com apenas 38 leitos de saúde mental em hospitais gerais, considerados como ideais. A quantidade de leitos em hospitais psiquiátricos é quase 14 vezes maior, com 524 vagas. Segundo a Secretaria de Estado de Saúde de Goiás (SES-GO), já foi iniciado o repasse de uma contrapartida estadual para estimular os municípios a abrirem mais leitos de saúde mental. A pasta também promove a abertura de vagas em unidades próprias, além de realizar a capacitação da rede de urgência. Esta é a segunda de uma série de quatro reportagens preparadas pelo POPULAR para o mês da luta antimanicomial, celebrado em maio.
O número de leitos de saúde mental em hospitais gerais varia de acordo com o tamanho da população de cada município, com quantitativo ideal de um leito a cada 23 mil habitantes, e o porte das unidades de saúde. Entretanto, a gerente de Saúde Mental da SES-GO, Nathália dos Santos Silva, concorda que a quantidade atual é insuficiente. Para se ter ideia, um plano de ação traçado pelo poder público para a Raps de Goiás em 2015, aponta a necessidade de se atingir um quantitativo de 274 leitos de saúde mental em hospitais gerais. "Estamos revendo essa estimativa levando em conta a realidade atual. O número pode aumentar ou diminuir", pondera Nathália.
A Lei 10.216, de abril de 2001, é o marco legal da reforma psiquiátrica brasileira. De acordo com o Ministério da Saúde, a legislação estabelece a responsabilidade do poder público no desenvolvimento da política de saúde mental no Brasil por meio do fechamento de hospitais psiquiátricos, abertura de novos serviços comunitários e participação social no acompanhamento de sua implementação. Nesse sentido, a advogada especialista em Direito Médico e da Saúde, Ana Lúcia Amorim Boaventura, destaca que a legislação prevê que as internações só aconteçam quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. "Deve se levar em conta a ressocialização do paciente."
A portaria nº 148, de janeiro de 2012, do Ministério da Saúde, institui o incentivo financeiro de custeio anual dos leitos de saúde mental em hospitais gerais no valor de R$ 67,3 mil por cada leito implantado. O recurso foi calculado considerando que 60% das internações duram menos que sete dias. A partir de abril deste ano, a SES-GO também iniciou o repasse de uma contrapartida de 30% do valor enviado pelo governo federal. "É uma estratégia de indução de aumento desses leitos", frisa Nathália.
A gerente pontua que existe um esforço para que os hospitais estaduais também passem a contar com esse tipo de leito. O Hospital Estado de Formosa (HEF), por exemplo, já possui oito leitos do tipo, que não constam entre os 38 citados acima, pois ainda serão habilitados junto ao Ministério da Saúde. Os leitos de saúde mental em hospitais gerais são considerados ideais pois neles os pacientes conseguem ter a saúde tratada de forma integral por equipe multiprofissional.
Hospitais psiquiátricos
Já o repasse financeiro para a operação dos leitos em hospitais psiquiátricos filantrópicos em Goiás é feito com base em valores de diárias, que podem ter incremento de acordo com o porte das unidades. O governo estadual entra com uma contrapartida de 100%. No estado, a SES-GO irá assumir a gestão de três instituições do tipo: o Instituto de Medicina do Comportamento Eurípedes Barsanulfo (INMCEB), em Anápolis, o Instituto Espírita Batuíra de Saúde Mental e a Casa de Eurípedes, ambos em Goiânia.
Segundo Nathália, a medida é necessária para qualificar o atendimento, a regulação e promover a desinstitucionalização dos moradores que ainda estiverem nestes espaços. "Infelizmente, ainda existem unidades que mantêm pessoas internadas pelos recursos", frisa. As pessoas que passam pela desinstitucionalização e não possuem famílias podem ser encaminhadas para Residências Terapêuticas (RTs) (leia mais ao lado).
A SES-GO não abrirá novos leitos psiquiátricos - isso vai contra a política ministerial. A pasta já é bem sucedida no que diz respeito aos hospitais de custódia, que são instituições inseridas no sistema prisional para abrigarem pessoas com transtorno mental ou deficiência psicossocial que cometeram crimes. Em Goiás, existe o Programa de Atenção ao Louco Infrator (Paili), referência no País. Ele promove a atenção à saúde, acompanhamento e encaminhamento ao paciente judiciário utilizando a rede de saúde mental existente.
O vice-presidente da Associação Psiquiátrica de Goiás (APG), Tiago Batista de Oliveira, é um crítico dos leitos de saúde mental em hospitais gerais. De acordo com ele, na prática, esses leitos não substituem os leitos em hospitais psiquiátricos, pois atendem o que classifica como "públicos diferentes". Além disso, ele acredita que o correto seria a existência de unidades psiquiátricas dentro dos hospitais gerais para tratar pacientes com acometimentos psiquiátricos e clínicos graves, já que essas pessoas possuem especificidades. "Um paciente psicótico grave precisa de espaço para atividade. Não pode ficar 24 horas contido em um leito", defende.
Preparação
Em Goiás, as pessoas acessam leitos de saúde mental em hospitais gerais, leitos em hospitais psiquiátricos ou leitos do Complexo de Referência Estadual em Saúde Mental (Cresm), este último destinado a usuários de álcool e drogas, via regulação que acontece por meio dos aparelhos da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) que prestam atendimento de urgência: Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), prontos socorros e o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu).
Nessa área, Nathália considera que o maior desafio é a capacitação de profissionais. "Temos desenvolvido um trabalho extenso para preparar a rede para fazer o manejo adequado dos casos de crise e urgência em saúde mental", diz. Um exemplo é o I Seminário Estadual sobre Crise e Urgência em Saúde Mental, que acontecerá em junho. O objeto do evento, que é uma parceria da SES-GO com a Universidade Federal de Goiás (UFG), é qualificar cerca de 600 profissionais da rede para lidarem com casos de autoagressão e risco de suicídio, agitação e situação de violência, intoxicação e abstinência alcoólica ou por drogas estimulantes.
Dignidade para os marcados pela dor
Quando O POPULAR chegou até Palmelo, a 130 quilômetros de Goiânia, na tarde da última terça-feira (7), o clima era de expectativa. Os usuários do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) da cidade e os 25 moradores das quatro Residências Terapêuticas (RTs) instaladas no município se preparavam para uma noite cultural em prol da luta antimanicomial e transmitiam uma espécie de ansiedade festiva coletiva sobre o evento que aconteceria no dia seguinte, no coreto da cidade.
Na RT Nova Esperança, duas moradoras se moviam cuidadosamente pela casa a fim de não causarem estragos nas unhas pintadas minutos antes. As mãos estavam enfeitadas de rosa e vermelho. Além disso, anéis e pulseiras também faziam parte do ritual de beleza para o grande evento. Durante um chá, feito e servido por uma idosa que mora no local em "copos de vidro para as visitas", o momento reservado para as danças foi apontado como o ponto alto da noite seguinte.
O frisson também era compartilhado pelas moradoras da RT Flores. Lá, uma das residentes fez questão de mostrar a cama onde dorme, as bonecas alojadas dentro do guarda-roupa e o vestido que pretendia usar na noite cultural. Outra moradora estava menos preocupada com a festa, pois devotava toda atenção à gata que adotou recentemente e ainda insistia em perambular sobre o muro da casa compartilhada por nove mulheres.
Há dois quarteirões dali, ainda na região central da cidade, existe uma construção que à primeira vista passa despercebida, já que parece apenas mais um prédio antigo comum. Entretanto, no fundo estão as ruínas de um sanatório desabilitado. Há anos atrás, todas essas mulheres animadas pela celebração que se aproxima, estavam internadas em lugares assim.
Apesar de ser um dos menores municípios de Goiás, com apenas 2,2 mil habitantes, Palmelo é considerada historicamente como a capital do espiritismo. Por conta da grande procura por cura através da religião, dois hospitais psiquiátricos já foram desabilitados no município: o Sanatório Espírita Eurípedes Barsanulfo, que foi fechado em meados dos anos 2000, e o Dispensário São Vicente de Paula, que foi desarticulado cerca de dez anos depois.
Os restos do que um dia foi o Sanatório Espírita Eurípedes Barsanulfo é a edificação que fica na região central de Palmelo. Parte dele foi transformado no Centro de Atenção Psicossocial (Caps). Entretanto, as ruínas ainda permanecem ao lado da instituição, como um lembrete constante dos horrores aos quais as pessoas que já passaram por ali foram submetidas.
O local, já bastante destelhado, se divide basicamente em dois corredores, com um espaço que servia para o banho de sol entre eles. Cada um desses corredores conta com diversos dormitórios. Cada um desses cômodos, abafados pela ausência de janelas, contam com duas camas feitas de concreto. A luz entra por meio do buraco de um cano, por onde os alimentos eram entregues para as pessoas internadas. Nos dormitórios que contavam com espaço para janelas, foram instaladas grades.
Alguns cômodos chamam atenção pela presença de desenhos nas paredes, uma prova de que mesmo sendo um local inóspito, ali viviam pessoas. Em um dos dormitórios, o talento de uma das pessoas internadas salta aos olhos por meio de um desenho de Jesus Cristo. Outro ponto impossível de ignorar são as correntes presas junto às camas de concreto. Elas eram usadas para conter internos. "Eles nem gostam de comentar como era antigamente", enfatizou Karina Queiroz, coordenadora do Caps de Palmelo, durante visita ao local.
O Caps, aberto em 2006, é responsável por regular pacientes para as RTs e administrá-las. A unidade também é o local onde os moradores das RTs vão para fazer atividades terapêuticas junto a uma equipe multiprofissional. Como a unidade é porta aberta, também atende o restante da população de Palmelo e da cidade vizinha, Santa Cruz de Goiás. Por mês, mais de 200 pessoas são acompanhadas pela unidade.
A primeira RT de Palmelo foi aberta em 2008. Atualmente, as quatro unidades da cidade atendem pessoas de outros 18 municípios da região. As RTs se dividem em duas masculinas e duas femininas. No total, abrigam 14 mulheres e 11 homens. A pessoa mais jovem tem 46 anos. Os locais se mantêm com recursos públicos, mas os moradores também recebem benefícios do governo, que são geridos por curadoras.
As RTs foram criadas justamente para acolher pessoas que passaram por internações de longa permanência, egressas de hospitais psiquiátricos e hospitais de custódia. A ideia é prezar pela liberdade e autonomia das pessoas que moram nesses locais. "Eles vão ao supermercado e ajudam nas atividades domésticas, por exemplo", afirma a coordenadora. No que diz respeito a episódios de intolerância por parte da população, Karina explica que os moradores do município passaram por um processo de conscientização nos últimos anos. "Sabem tratar os meninos. Ninguém mais fala que são doidos", diz.
Em Goiás, existem 18 RTs em funcionamento. A gerente de Saúde Mental da Secretaria de Estado de Saúde de Goiás (SES-GO), Nathália dos Santos Silva, conta que Goiás conta com outros exemplos parecidos com as RTs de Palmelo, como é o caso de Rio Verde, e considera que as unidades são um símbolo de como a luta antimanicomial pode recuperar a dignidade de pessoas que foram institucionalizadas. "São a prova de que dá certo", finaliza.