No auge da pandemia da Covid-19 , a médica infectologista Cristiana Toscano, docente do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública da Universidade Federal de Goiás (IPTSP/UFG), foi a única latino-americana convidada a integrar o Comitê Global de Experts em Imunização da Organização Mundial da Saúde (Sage/OMS), do qual tornou-se membro permanente. Cinco anos depois, ela diz ao POPULAR que o momento é de resgatar aprendizados e de fazer um balanço dos avanços e das dificuldades do período. "Esses aprendizados podem nos ajudar, como sociedade, a nos preparar e minimizar o risco e o impacto de futuras pandemias."
🔔 Siga o canal de O POPULAR no WhatsApp
Cristiana Toscano esteve este mês em Genebra (Suíça) onde participou de reuniões da Sage/OMS para revisão das recomendações das políticas de saúde. "A questão principal é entender a importância das ações de uma instituição multilateral no contexto global de vacinação, de detecção de patógenos emergentes e de prevenção de pandemias. É preciso viabilizar a continuidade das ações da OMS." Em janeiro, o presidente dos EUA, Donald Trump, anunciou a saída do país da OMS. "Temos uma preocupação com a sustentabilidade de ações globais, como a erradicação da poliomielite e o controle do sarampo, mas outras fontes de financiamento devem surgir. É uma questão de reorganização", afirma a pesquisadora.
A cientista acredita que novas epidemias e pandemias são inevitáveis. "No Brasil, vivemos em 2024 a maior epidemia de dengue do País, tivemos a introdução da Mpox, grande aumento e disseminação da febre do Oropouche e novos focos de febre amarela com aumento significativo de casos. Globalmente, temos o evento de gripe aviária H5N1, já disseminada entre mamíferos e aves, com risco real de ser transmissível entre humanos", lembra. Cristiana Toscano reitera que, em contrapartida, há novas vacinas disponíveis e em desenvolvimento, como os imunizantes contra a dengue, contra o vírus sincicial respiratório e ainda contra a chikungunya, que deve ser licenciada em breve.
Para a pesquisadora, a Covid-19 matou muita gente no Brasil e no mundo, "mas o número poderia ter sido muito maior se não fossem as medidas de saúde pública e os desenvolvimentos científicos que avançaram rapidamente no período". A cientista ressalta que, para fazer frente aos desafios impostos por esses eventos, é necessário dar continuidade às estratégias e ações de monitoramento de riscos, prevenção, controle e combate a futuros eventos epidêmicos e pandemias para não reativar uma vez mais a crise sanitária. "Em um mundo globalizado, as estratégias de prevenção e controle de doenças requerem ações coordenadas e globais." Isso significa um sistema eficiente de monitoramento, de compartilhamento de informações, equipes treinadas e disponíveis, colaboração entre países e recursos financeiros.
"Ações de prevenção, como a vacinação, evitam milhões de mortes no mundo a cada ano. No entanto, seu impacto torna-se irrelevante se as vacinas não forem epidemiologicamente adequadas às populações que atendem, não forem aceitas pelas comunidades ou não forem efetivamente distribuídas por meio de programas rotineiros ou campanhas de imunização em massa. Os programas de imunização sempre enfrentaram ameaças -- desde a instabilidade política até a desinformação --, desafios que estão se tornando cada vez mais graves no cenário global atual", enfatiza Cristiana Toscano. A docente do IPTSP/UFG vai integrar o grupo de trabalho (GT) anunciado esta semana pelo Ministério da Saúde para elaborar propostas que ampliem a capacidade do País de enfrentar emergências de saúde pública.
No ano passado, Cristiana Toscano recebeu a Medalha de Mérito Oswaldo Cruz, a maior honraria na área da saúde, em reconhecimento à sua contribuição para a saúde pública brasileira. Em 2025, assumiu a coordenadoria do recém-criado Centro de Excelência em Tecnologia e Inovação em Saúde (Ceti-Saúde) da UFG. Um dos objetivos do GT do Ministério da Saúde é propor a criação de uma Agência de Inteligência em Emergências de Saúde Pública no Brasil, uma ideia defendida por vários cientistas, entre eles Cristiana Toscano. As propostas do GT serão apresentadas em relatório num prazo de 60 dias.

Gabriela Duarte, do IQ/UFG: responsável pelos testes rápidos para a Covid-19 em Goiás ( Wesley Costa / O Popular)
Fapeg investiu em estudos sobre a Covid-19
A ciência foi a grande protagonista da pandemia da Covid-19, maior crise sanitária mundial desde a gripe espanhola em 1918, que matou de 50 milhões a 100 milhões de pessoas -- o que seria 3% da população do planeta à época. Apesar das semelhanças entre as doenças, mais de cem anos depois, num mundo globalizado, estruturas acadêmicas e cientistas se mobilizaram com rapidez impressionante para conter o Sars-CoV-2 e suas variantes. Uma vacina eficaz surgiu em nove meses. As farmacêuticas Pfizer -- em parceria com a BioNtech -- e Moderna usaram o RNA mensageiro sintético (m-RNA), mecanismo que já era estudado. Em 2023, os criadores da fórmula, Katalin Karikó e Drew Weissman, receberam o Prêmio Nobel de Medicina.
No Estado, o movimento não foi diferente. Logo que a pandemia chegou, em 2020, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (Fapeg) fez uma Chamada Emergencial para buscar soluções pela ciência. Treze propostas foram aprovadas e outras três pelo Programa Pesquisa para o SUS (PPSUS). Entre os estudos, dois coordenados por professoras doutoras da UFG: o que definiu o teste rápido RT-Lamp, tendo à frente Gabriela Mendes Duarte, do Instituto de Química (IQ); e o que sequenciou o genoma do vírus Sars-CoV-2 em circulação por Goiás, sob a responsabilidade de Mariana Pires de Campos Telles, do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFG e também da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Entre 2020 e 2024, a Fapeg financiou 27 projetos relacionados à Covid-19, superando R$ 2 milhões em investimento.
Público tem acesso a acervos digitais
As gerações futuras terão dificuldade para entender o que foi a pandemia da Covid-19. Desde que ela foi oficialmente anunciada, a OMS estima que o vírus Sars-CoV-2, causador da doença, provocou mais de 777 milhões de infecções e matou mais de 7 milhões em todo o mundo, embora especialistas acreditem que esse número possa ser muito maior. No Brasil foram mais de 700 mil mortes e em Goiás, em torno de 29 mil. O isolamento social obrigatório em razão da crise sanitária foi um golpe na saúde mental.
Em Goiás, gestores da Secretaria de Estado da Saúde elaboraram em 2022 o e-book Gestão e Inovação em Tempos de Pandemia -- Um relato da experiência à frente da SES-GO , em que detalham as estratégias adotadas para enfrentar o vírus devastador, um desafio gigantesco que exigiu esforço hercúleo e rendeu uma série de aprendizados. O trabalho tem acesso público pelo link: https://goias.gov.br/saude/wp-content/uploads/sites/34/2024/01/Ebook-5-versao-atualizada.pdf.
Em nível nacional, o Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (SoU_Ciência) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) lançou este mês o Acervo da Pandemia de Covid-19 , um repositório digital gratuito e aberto ao público, que reúne um extenso conjunto de materiais que, segundo a instituição, evidenciam condutas e discursos negacionistas de agentes públicos e privados durante a pandemia de covid-19 no Brasil (2020-2022). O projeto tem parceria com a Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico Brasil), com o Centro de Estudos de Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (Cepedisa/USP), com o grupo de mídia independente Camarote da República e com o podcast Medo e Delírio em Brasília.
O SoU_Ciência é um grupo de pesquisa multidisciplinar cadastrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), sediado na Unifesp. O projeto Acervo da Pandemia contou com a participação de pesquisadores e estudantes das universidades federais de São Paulo e do Rio de Janeiro (Unifesp e UFRJ) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que integram o SoU_Ciência.
A Universidade Federal de Goiás (UFG) contribui com o Acervo da Pandemia por ter apoiado o desenvolvimento do software livre Tainacan pelo Laboratório de Inteligência de Redes da Universidade de Brasília (UnB) utilizado no projeto. O Tainacan, que nasceu também com o suporte do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia e do Instituto Brasileiro de Museus, é muito usado para a gestão e compartilhamento de acervos.
Para acessar o Acervo da Pandemia : https://acervopandemia-souciencia.unifesp.br/