Direita brasileira se revê diante da crise no bolsonarismo
Conservadorismo e autoritarismo se misturam, mas também se distinguem, em meio ao fracasso de ataques golpistas e denúncias contra ex-presidente, veem analistas

Karla Jaime

Pedro CélioAlves Borges: “Um aspecto presente no ideário conservador é o respeito à lei” (Benedito Braga)
As tentativas de golpe recentes no Brasil, que culminaram com a invasão e depredação das sedes dos três Poderes em Brasília, no dia 8 de janeiro, evidenciaram o perfil autoritário de militantes defensores de pautas conservadoras. Os golpistas não apenas não tiveram êxito, como prestam contas à Justiça pelos atos de destruição de patrimônio público, rechaçados até mesmo por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), também ele alvo de uma série de denúncias e investigações, entre elas de se apropriar de joias presenteadas pelo governo Saudita.
Apesar desse desgaste e de ter sido declarado inelegível por oito anos pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral),Bolsonaro segue recebendo homenagens e acenos de políticos que ainda apostam em sua influência nas próximas eleições. Cenário que levanta questões sobre como fica a extrema direita no país após o golpe fracassado, a prisão e o julgamento dos envolvidos nos ataques em Brasília, assim como sobre o bolsonarismo, com o líder maior acusado de vários crimes, entre eles, corrupção.
Para falar sobre esse quadro em que conservadorismo e autoritarismo se misturam, mas também se distinguem, O POPULAR ouviu o cientista político Pedro Célio Alves Borges e a pesquisadora de questões envolvendo relações de poder e subjetividade Cristina Scheibe Wolff, do departamento de História da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).
Conservadorismo e autoritarismo, onde convergem e o que os distingue?
Pedro Célio - No conceito, não necessariamente convergem. O maior exemplo foi o papel do governo Churchill na Inglaterra no combate ao nazifascismo. Porém, há a tendência de os conservadores não tolerarem mudanças e inovações que alterem costumes e valores tradicionais. Em muitas experiências de sociedades avançadas os conservadores apoiam a democracia no que ela tem de essência forte: o respeito à diversidade e à diferença.
Cristina Scheibe Wolff - Se pensarmos que o conservadorismo quer manter a hierarquia social, em que há classes sociais e pessoas nessas classes que estão numa posição hierárquica inferior, o conservadorismo é ligado de certa forma a uma ideia de autoritarismo, talvez não no sentido de uma ditadura política, mas o conservadorismo defende a existência de uma autoridade, e essa autoridade é de quem? Dos homens brancos de classes com certa riqueza, porque tem toda uma ideia de meritocracia que vem junto com isso, e também se tem confunde com o Estado que é dominado ainda pelos homens brancos no Brasil. Uma das características importantes desse conservadorismo é a misoginia, a ideia de que as mulheres são inferiores, portanto, é o antifeminismo. Todos os movimentos que possam questionar a hierarquia, movimentos negros, indígenas, de mulheres, camponeses, todos esses movimentos que questionam a forma de hierarquia vão contra esse conservadorismo e, portanto, são vistos como inimigos dessas pessoas que se colocam como conservadoras.
Como o fato de nem todos os conservadores serem autoritários tende a se refletir na hora do voto? A extrema direita se enfraquece com a rejeição a tentativa de golpe?
Pedro Célio - Um aspecto presente no ideário conservador é o respeito à lei. O "conservador raiz", ou programático, é essencialmente um constitucionalista. Na linguagem rotineira, ele é de centro, embora seja difícil qualificar o que seja o "centro político". Ele não gosta da instabilidade, da quebra de contratos, do imprevisto na rotina das organizações e da República. Acho que por isso, nas eleições de 2022 a presença de Geraldo Alckmin na chapa de Lula simbolizou que havia conservadores não bolsonaristas. Posso estar enganado, mas hoje muitos conservadores devem estar envergonhados do apoio que deram à extrema direita no Brasil. Mas eu repito que essas tendências são teóricas e analíticas e que, na ação prática, os ventos quentes da política real pesam bastante na definição de como um conservador vai agir.
Cristina Scheibe Wolff - Hoje, têm grupos importantes no Brasil que se identificam com o ex-presidente Jair Bolsonaro, mas não só com ele, com essa chamada nova direita, eles se identificam como pessoas de direita. Então, essa ideia de que nem todos os conservadores são autoritários é meio complicada, têm pessoas que não admitem falar em ditadura, mas não veem que, de alguma forma, o conservadorismo sempre é autoritário.
O bolsonarismo segue com apelo eleitoral entre os conservadores, mesmo os que condenam atos golpistas?
Pedro Célio - O bolsonarismo não deve encantar os conservadores no nível em que o conseguiu em 2018 e em 2022. Essa turma avacalhou até mesmo com uma das bandeiras mestras do conservador sincero (ou raiz ou programático), que é o combate à corrupção. Presumo que hoje, nem como retórica interna, um bolsonarista que fala de combate à corrupção deve conseguir as plateias e apoios que antes conseguia.
Cristina Scheibe Wolff - Com certeza essa extrema direita se enfraquece pela rejeição aos atos golpistas, especialmente diante da falha de não terem conseguido realmente fazer um golpe, mas ao mesmo tempo eles mantêm uma certa realidade paralela, via fake news e redes sociais, WhatsApp, que eles usam para manter grupos ligados ao ex-presidente. Dependendo da região, como no Sul, onde moro, eles conseguiram eleger uma maioria para o Congresso. Não tenho uma pesquisa sobre isso, mas tenho escutado comentários como "ah, não votei em nenhum dos dois", "não quero nenhum dos dois", e pessoas que, por outro lado, condenam muito fortemente o PT, mas também não conseguem admitir neste momento, embora tenham votado antes em Bolsonaro, apoio a ele, com essas denúncias, principalmente no caso de suspeita de roubo das joias, uma série de denúncias de irregularidades e corrupção no governo passado. Essa pessoa começa a não querer dizer que apoia Bolsonaro, mas também não quer apoiar o governo Lula.
Como políticos que se mantêm próximos ao ex-presidente Jair Bolsonaro, a exemplo do governador de Goiás, Ronaldo Caiado (UB), que o recebeu como hóspede no Palácio das Esmeraldas e prestigiou homenagem a ele feita pela Assembleia Legislativa de Goiás, podem se beneficiar ou, por outro lado, sofrer desgastes nas próximas eleições (2024 e 2026)?
Pedro Célio - Aí já outra história. Há um aspecto interessante que é a desvinculação do voto, nos níveis nacional e regional ou municipal. Trata-se de esferas na definição do comportamento político que são distintas das esferas que produzem a identificação ideológica ou de valores. Creio que na normalidade das coisas, a política prática, isto é, o jogo de interesses como ele é jogado, precede e até mesmo supera as aproximações "tão-somente" ideológicas. Basta lembrarmos que, estando Bolsonaro inelegível, os conservadores não apostam um níquel em busca de um líder para o vácuo que ele deixa que tenha o seu perfil de agressividade, intolerância e extremismo.
Cristina Scheibe Wolff - Governadores que se identificam com o ex-presidente e mantêm posição conservadora veem que isso ainda rende bastante dividendos políticos em alguns estados. Mas, vamos ver. Essa rede de informações falsas que propagam os apoiadores de Bolsonaro é muito forte, cria essa ideia de que todas as irregularidades e acusações envolvendo o ex-presidente são mentiras, é um cenário muito complexo.
Quais os aspectos mais fortes do conservadorismo na sociedade brasileira?
Pedro Célio - Devo dizer, no início, que vejo o conservadorismo como um estilo de pensamento de forte presença nas sociedades modernas. Como fenômeno social e político, ele não constitui exatamente um fenômeno brasileiro. Sua estrutura de conexões com a realidade compartilha o mesmo arcabouço lógico que, por exemplo, o socialismo e o liberalismo. De modo muito semelhante do que ocorre em outros locais, inclusive nas nações desenvolvidas, os conservadores no Brasil demoram a aceitar e a se acostumar com as alterações que o avanço da modernidade implementa nas relações humanas e nas instituições, de maneira geral. Demoram, mas com grande atraso se adaptam. Nesse aspecto, o conservadorismo difere de ser tradicional ou reacionário. Nesses dois casos, com gradações, é claro, há mesmo a rejeição à mudança, a idealização do passado e, no limite, isso pode assumir formas de mobilização política. Mas acho importante diferenciar o conservador doutrinário dessas duas posturas.
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Cristina Scheibe Wolff - O que é conservadorismo? É tentar conservar o status quo, a sociedade como está, o que interessa para as pessoas que estão em situação privilegiada. Quem são essas pessoas no Brasil? São as classes altas e médias de homens e mulheres brancos, que têm uma renda média mais alta que a de homens e mulheres negros. Isso também é atravessado pela questão religiosa, muito do conservadorismo tem relação com a religião cristã que se baseia em toda uma estrutura social marcada pelo patriarcado. Na concepção da Igreja Católica mais ortodoxa e das outras igrejas cristãs, muitas vezes se pensa que a família tem que estar chefiada por um homem, as mulheres têm um papel na reprodução, na maternidade, no cuidado, e tudo que questione esse papel das mulheres numa situação hierárquica inferior aos homens é considerado subversivo.
Caso concorde que a nossa sociedade seja majoritariamente conservadora, explique por quê.
Pedro Célio - A literatura é diversificada, mas coincide em apontar que o ambiente dos anos 1920/30 abriu passagem para que fortes tendências modernizantes fossem inoculadas na formação da nação em nosso país. Isso, no entanto, ocorreu mantendo as bases dos anteriores modelos societários, produtivos e políticos, numa coexistência que se manifesta nos grandes conflitos vividos nas décadas seguintes. Uma marca expressiva das contradições e da diversidade resultante dessa coexistência, seja o padrão de organização e funcionamento das instituições políticas e a cultura política com traços predominantes até nossos dias, de exclusão, elitismo e patrimonialismo na condução vida pública.
Quanto a ser majoritário ou não, essa balança varia nas diferentes conjunturas. Por exemplo, o golpe de 1964 foi na essência conservador da estrutura agrária e no discurso ideológico, mas veio em nome de atualizar o país em termos de infraestrutura e tecnologia. Antes dele, o período Vargas exerceu o poder de maneira antiliberal e antiprogressista, mas fundou bases avançadas na época na área dos direitos sociais e da cidadania urbana. Mais recente, tivemos o ciclo de democratização progressista após a ditadura de 64, coroado com a rendição abrupta da maioria do eleitorado apoiando mensagens reacionárias e até mesmo anticivilizatórias, ao eleger Jair Bolsonaro para a Presidência da República. E ele fez o que fez, é o que é, com a desfaçatez de dizer-se conservador.
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