Mistérios envolvendo acidentes aéreos são intrigantes e aguçam a curiosidade popular. Este ano, uma equipe de exploradores anunciou ter encontrado os destroços do avião de Amelia Earhart, piloto pioneira norte-americana que desapareceu em 1937. Em março, completou dez anos do sumiço misterioso no Oceano Índico do voo MH370, da Malaysia Airlines, com 239 pessoas a bordo. O que poucos goianos sabem é que dois membros da família do primeiro prefeito de Goiânia, Venerando de Freitas Borges, se tornaram personagens dos enigmas da aviação mundial.
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Em outubro de 1963, o caçula da prole de seis filhos de Venerando e Maria Araújo de Freitas, Luiz Roberto de Freitas Borges, então com 23 anos, desapareceu ao lado do piloto Alan Kardec e do jovem Ronaldo de Souza. Eles estavam a bordo do monomotor prefixo PT-BDO que Alan Kardec, o proprietário, pretendia trocar nos Estados Unidos. A negociação foi infrutífera e no retorno ao Brasil a aeronave sumiu sem deixar vestígios após a última escala em Caiena, capital da Guiana Francesa, uma das paradas previstas.
"Por muito tempo minha avó manteve o quarto do 'tio Roberto' arrumado e com uma vela acesa", revela o arquiteto Guilherme de Freitas, neto de Venerando. Ele tinha sete anos quando Luiz Roberto desapareceu, mas lembra da figura afetuosa que o levava para cortar cabelo no salão O Elegante no centro de Goiânia. "Ele era a luz dos olhos do meu avô por ser o filho que mais parecia com ele fisicamente e também no temperamento." Precoce, o caçula da família Freitas Borges dominava quatro idiomas e o pai descobriu que ele estudava russo quando desapareceu.
Guilherme de Freitas conta que Mauro Borges, então governador de Goiás, acionou a estrutura federal para as buscas da aeronave. Carlos, outro filho de Venerando, entrou num avião do Para-Sar, unidade especial de resgate da Aeronáutica, e participou da procura. Foram meses de buscas sem nenhuma resposta. "A hipótese mais provável é que a queda foi na floresta amazônica", diz Guilherme. Em várias ocasiões, seu avô foi ludibriado por pessoas que pediam dinheiro alegando saber onde o filho estava. Houve ainda boatos de que o avião tinha levado armas para Cuba e que o trio ficou por lá.
Luiz Roberto já tinha se formado em Direito em Belo Horizonte quando aceitou o convite de Alan Kardec para a viagem. Àquela altura, segundo Guilherme, o tio, um inovador, ministrava aulas de inglês pela então TV Rádio Clube, e poderia servir de intérprete. Luiz Roberto convidou para a aventura o grande amigo Ronaldo, filho do médico Antônio Bertoldo de Souza, que tinha sido deputado estadual. "Meu avô tentou dissuadi-lo da ideia, mas não teve jeito." O jovem bacharel em Direito deixou uma noiva em Belo Horizonte, a professora Teresa.
Venerando de Freitas e a mulher lidaram de forma discreta com a tristeza, o vazio e as dúvidas pelo resto da vida. O desaparecimento de Luiz Roberto, que foi considerado um dos melhores alunos do Ateneu Dom Bosco, provocou um trauma emocional em toda a família. Três anos antes, o casal tinha perdido para o lúpus eritematoso a filha Eclair, mãe de cinco crianças, que vivia em São Paulo. Duas delas, Cleuza e Maria Letícia, vieram morar com os avós em Goiânia em janeiro de 1964, ajudando Venerando e Maria a lidar com as incertezas e a saudade do filho insepulto.

O primeiro prefeito de Goiânia, Venerando de Freitas Borges, perdeu dois membros da família em acidentes aéreos, cujos corpos nunca foram encontrados. Na foto, Luiz Roberto, filho mais novo de Venerando de Freitas (Divulgação)
O herói do Desastre de Orly
Eclair de Freitas, filha de Venerando, foi casada com Gilberto Araújo da Silva, um paraibano que chegou a Goiás aos 18 anos trazido pelo tio Filon Ferrer Araújo, então sargento da Força Aérea Brasileira (FAB), que entre 1934 e 1942 comandou todo o serviço da FAB em Goiás e dirigiu o Serviço Aéreo do estado. O militar dinamizou o aeroclube de Goiânia, criado em 1938, e fundou os de Jataí, Rio Verde e Anápolis que formaram um grande número de pilotos. Filon foi um dos fundadores do Correio Aéreo Nacional e transmitiu ao sobrinho a paixão pela aviação, sendo seu principal orientador.
Ao desembarcar em Goiânia em 1941, Gilberto foi matriculado no Lyceu e passou a frequentar o aeroclube onde recebeu noções de mecânica de aviões. Em seguida, foi nomeado servidor da Prefeitura de Goiânia, quando o prefeito era Venerando. A vida burocrática não o agradou e ele voltou a se dedicar à mecânica de aeronaves e aprendeu a pilotar com o tio Filon Ferrer. Entre 1944 e 1946, Gilberto Araújo foi piloto da Fundação Brasil Central, baseado em Xavantina (MT). Àquela altura, o tio Filon já prestava assistência à expedição Roncador-Xingu criada por Getúlio Vargas em 1941 dentro do processo de interiorização do Brasil.
No livro A Marcha para o Oeste - A Epopéia da Expedição Roncador-Xingu , escrito pelos irmãos Orlando e Cláudio Villas Bôas, o nome de Gilberto Araújo aparece como um ousado piloto que enfrentou um forte nevoeiro pousando numa pista improvisada. Em 1947, o piloto começou a carreira na aviação comercial, assumindo o posto de comandante realizando voos em todas as linhas da Varig no exterior no comando do Boeing 707. Ele foi protagonista de dois episódios que se tornaram emblemáticos na história da aviação mundial.
No dia 11 de julho de 1973 Gilberto Araújo da Silva comandava o Boeing 707, voo RG 820 da Varig, rota Rio de Janeiro-Paris, que fez um pouso forçado numa plantação de cebolas, no vilarejo Saulx-les-Chartreux, ao sul da capital francesa. Faltava apenas um minuto para a aterrissagem no Aeroporto de Orly, mas a aeronave estava tomada por fumaça originada em um dos banheiros. Das 134 pessoas que embarcaram no Aeroporto do Galeão, no Rio, 11 sobreviveram - dez tripulantes e um passageiro, o carioca Ricardo Trajano, então com 19 anos.
As investigações mostraram que sem conseguirem enxergar o painel de controle, o comandante Gilberto e o subcomandante Antônio Fuzimoto quebraram as janelas da cabine de comando, colocaram os rostos para fora e realizaram a manobra. O feito evitou uma tragédia sem precedentes, caso o avião pousasse na área urbana de Paris, mas quase todos os passageiros perderam a vida, sufocados pela fumaça.
Na aeronave estavam nomes conhecidos como o então presidente do Senado, Filinto Muller; o cantor Agostinho dos Santos; a socialite Regina Léclery; e o iatista Joerg Bruder. O episódio que ficou conhecido com o Desastre de Orly, mudou para sempre as normas de segurança da aviação. Na época era permitido fumar a bordo e a fumaça, teria começado num cesto de lixo de um dos banheiros, causada por uma ponta de cigarro aceso. Inicialmente veio a proibição do uso de cigarros nos banheiros, e após muita polêmica, em 1988, todas as companhias aéreas do mundo instituíram a proibição total do fumo no interior dos aviões.
Dor e perplexidade
O Desastre de Orly marcou profundamente o comandante Gilberto Araújo. "Ele ficou traumatizado por não ter evitado a morte dos passageiros", conta o sobrinho, Guilherme de Freitas. Após o fato, o comandante foi condecorado pela FAB e pelo Ministério dos Transportes da França. "Temos muito orgulho do profissional que ele foi. Atendo muita gente da aviação que estuda acidentes aéreos. Um deles, piloto da Passaredo, chorou em meu consultório quando contei que era filha do Gilberto. Ele me disse que meu pai é considerado um herói", conta a médica alergista Maria Letícia Chavarria, 72, a primogênita de Gilberto e Eclair .

O primeiro prefeito de Goiânia, Venerando de Freitas Borges, perdeu dois membros da família em acidentes aéreos, cujos corpos nunca foram encontrados. Na foto, Médica Maria Letícia Chavarria, mostrando imagens do pai, o comandante Gilberto Araújo da Silva, que morreu num acidente aéreo no Japão em 1979. Seu pai era genro do Venerando, seu avô, com quem passou a maior parte de sua vida. (Wesley Costa / O Popular)
Após o episódio de Orly, o comandante Gilberto Araújo, foi promovido a piloto master e transferido para Los Angeles (EUA). No dia 30 de janeiro de 1979, ele e outros cinco tripulantes da Varig embarcaram no Boeing 707-323, prefixo PP-VLU, no Aeroporto de Narita em Tóquio (Japão). O avião cargueiro voaria sem escalas até Los Angeles e o destino final seria o Galeão, no Rio de Janeiro. A decolagem foi às 20h23, o primeiro contato com o controle de tráfego aéreo foi 22 minutos depois, sem problemas a bordo. O segundo, previsto para às 21h23, não ocorreu.
O avião desapareceu sem deixar vestígios e nenhum corpo foi encontrado. Entre outros itens, a carga era composta por 53 quadros do pintor Manabu Mabe que voltavam de uma exposição no Japão. As pinturas foram avaliadas na época em mais de R$ 1,2 milhão. O plano de voo previa que na Califórnia o comandante Gilberto Araújo entregaria o comando a uma nova tripulação, que assumiria o voo até o Galeão. Maria Letícia revela que a Varig levou os filhos do comandante Gilberto com Eclair para Los Angeles para se unir à família de lá enquanto as buscas prosseguiam. Da união com Eclair nasceram Maria Letícia, Cleuza, Elizabeth, Leonardo e Gilberto. No segundo casamento de Gilberto com Vilma Fogarolli Silva, vieram Ana Claudia e Eduardo.
"Os governos japonês e americano, apoiados pelo governo brasileiro se empenharam muito. Eles explicaram que a região onde o avião desapareceu tem muitos abismos oceânicos e se ele tivesse caído em um deles, era difícil de ser localizado", afirma Maria Letícia. Todos os dias a família recebia um relatório de buscas. "Quando disseram que vasculharam todas as áreas e não tinham mais o que fazer foi um impacto muito grande. Nesse momento tivemos a consciência de que não teríamos mais a possibilidade de concluir o ciclo vital. A gente demora a elaborar a perda. É uma situação não concluída. Além da perplexidade, a gente não sabe que caminhos tomar. A despedida vai sendo feita de forma gradual ao longo da existência."
Dois meses antes de desaparecer aos 54 anos, o comandante Gilberto veio a Goiânia conhecer o neto Raul, filho de Maria Letícia. Foi uma visita rápida, mas repleta de significados. "Ele veio dos Estados Unidos, pegou um avião pequeno em Uberlândia e nos visitou. Ficou somente algumas horas. Meu filho mais velho estava com pouco mais de um ano e foi o único neto que ele conheceu", revela Maria Letícia. O registro do pai com o filho no colo, dentro do carro diante do antigo terminal do Aeroporto Santa Genoveva, é a última lembrança que a médica mantém sempre por perto.

O primeiro prefeito de Goiânia, Venerando de Freitas Borges, perdeu dois membros da família em acidentes aéreos, cujos corpos nunca foram encontrados. Na foto, Gilberto Araújo da Silva, com o neto Raul, filho de Maria Letícia. Última visita a Goiânia (12/11/1978) (Divulgação)
Um vida de perdas afetivas
Venerando de Freitas Borges foi convidado a administrar Goiânia por Pedro Ludovico Teixeira quando tinha apenas 28 anos. Embora já pai de três filhos, mantinha uma cara de menino, aspecto mencionado pelo fundador da nova capital. Um bigode resolveu o problema e, nomeado, ficou à frente da prefeitura de 1935 a 1945. Mais tarde, entre 1951 e 1955, eleito pelo PSD, voltou ao comando da cidade.
Da união com Maria Araujo de Freitas nasceram seis filhos, dos quais cinco morreram enquanto Venerando e a mulher viveram: Dila, teve morte súbita com poucos meses em 1939; Eclair sucumbiu ao lúpus em 1960; Luiz Roberto desapareceu num acidente aéreo; Carlos não resistiu a um câncer e morreu em 1982; Hírcio morreu por insuficiência cardíaca no dia 24 de outubro de 1984, aniversário de Goiânia.
Somente a filha Nize de Freitas acompanhou o casal até o final da vida. Maria Araújo de Freitas morreu em agosto de 1992. Venerando em janeiro de 1994. Nize, que foi proprietária da escola Yu-fon, que funcionou durante 30 anos ministrando ensinamentos sobre etiqueta, morreu em janeiro de 2019 por insuficiência renal.
Tragédia da Air France vira documentário
No último dia 1º completou 15 anos do acidente do voo 447 da Air France, considerado um dos maiores da aviação comercial. Em 2009 o Airbus A330 deixou o Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de Janeiro, em direção a Paris (França), com 228 pessoas a bordo, 58 brasileiros. Três horas depois o avião caiu no Oceano Atlântico após uma tempestade. Não houve sobreviventes. Foram resgatados 154 corpos e um robô depositou no fundo do oceano uma placa com a inscrição "em memória às vítimas do acidente com o voo AF 447", escrita em português, francês e inglês.
As caixas pretas foram localizadas dois anos depois, a 4 mil metros de profundidade e mostraram que a queda ocorreu por diversos fatores, como erros do piloto e formação de gelo sobre sensores externos. Foi o primeiro acidente aéreo da história que uma companhia aérea (Air France) e uma fabricante (Airbus) tiveram que dar respostas na Justiça por homicídio involuntário corporativo. No ano passado, a Justiça francesa absolveu ambas por considerar que "não há acusações suficientes".
No dia em que o acidente completou 15 anos, a Globoplay lançou o documentário Rio-Paris: A Tragédia do Voo 447 . Para a série de quatro episódios, já no ar, foram entrevistados familiares de vítimas, investigadores e especialistas.
Enigmas marcantes da aviação mundial
O caso de Amelia Earhart é o mais emblemático na história da aviação. Pioneira dos ares, ela fez o seu voo inicial em 1920 e foi a primeira mulher a atravessar o Oceano Atlântico pilotando um avião. Aos 40 anos, em 1937, ela desapareceu ao tentar dar a volta ao mundo. Seu voo, ao lado do navegador Fred Noonan, começou em Oakland (Califórnia), nos Estados Unidos. Pelo caminho fez diversas paradas, como em Natal e Fortaleza, no Brasil. Semanas depois pousou em Lae, na Papua-Nova Guiné e de lá seguiu para a Ilha Howland, no meio do caminho entre a Austrália e o Havaí. Ali, no dia 2 de julho faria uma parada para abastecer, o que não aconteceu. O destino dela e de Noonan nunca foi esclarecido. Ambos foram declarados mortos em 1939. Em janeiro deste ano, uma equipe de exploradores da Deep Sea Vision (DSV) anunciou que pode ter encontrado a aeronave de Amelia Earhart. O líder da expedição, Tony Romeu, ex-oficial da Aeronáutica dos EUA e fanático pela história da aviadora, disse que imagens feitas por um sonar mostram uma silhueta de formato muito parecido com o avião de Amelia. Como a câmera da equipe tinha quebrado, o sonar, um drone aquático que captura e traduz ondas sonoras, revelou imagens em baixa resolução. A aventura custou algo em torno de R$ 54 milhões. Para ter certeza da descoberta, uma nova expedição será realizada em 2025.
- Desde a madrugada do dia 8 março de 2014, está desaparecido o Boeing 777 que fazia o voo MH370 da Malaysia Airlines com 239 pessoas a bordo. O avião decolou de Kuala Lumpur (Malásia) com destino a Pequim (China), mas sumiu dos radares. As buscas duraram mais de quatro anos. Passageiros e a aeronave não foram encontrados, mas destroços foram coletados ao longo da costa da África e em ilhas do Oceano Índico. Apenas três fragmentos da asa foram confirmados como sendo do MH370.
Até hoje não foi esclarecido o desaparecimento do músico e compositor norte-americano Glenn Miller, conhecido por canções como In the Mood e Moonlight Serenade . Em dezembro de 1944, ao lado de dois militares, ele estava a bordo de um monomotor UC-64 que viajava da Inglaterra para a França. A Segunda Guerra ainda estava em andamento e Glenn Miller foi à Europa para entreter tropas dos aliados. Nem aeronave, nem corpos foram localizados, um mistério prestes a completar 80 anos.
- Em 16 de março de 1962, o Lockheed L-1049 Super Constellation da Flying Tiger Line decolou da base aérea de Travis, na Califórnia (EUA), com destino a Saigon, no Vietnã do Sul, com 96 soldados e 11 tripulantes a bordo. O avião fez uma escala em Guam e recebeu autorização para prosseguir para as Filipinas. Logo em seguida desapareceu dos radares. A hipótese mais provável é que o avião explodiu no ar devido a uma sabotagem. Os Estados Unidos eram aliados do Vietnã do Sul em guerra com o Vietnã do Norte, conflito que durou 20 anos. Nenhum vestígio foi encontrado.